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As Jornadas de Junho: Partidos Políticos e Apartidarismo

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brazil-confed-cup-protests.jpeg-1280x960As jornadas de Junho lograram rumos não-esperados na avaliação de alguns; maior adesão popular, simpatia da grande imprensa, maior absorção de temas da pauta da direita e da oposição, queda brusca da popularidade da presidenta Dilma, recrudescimento da aversão aos partidos e sindicatos, entre outros. Os novos rumos das manifestações geraram os mais diversos sentimentos políticos e intelectuais; perplexidade, incômodo, desconfiança, entusiasmo, satisfação, orgulho. A depender das convicções políticas e do lugar social e político do qual se fala, as posições e avaliações adotavam este ou aquele sentimento como princípio da análise. Os mais cautelosos reclamaram uma pausa em todo esse alarido de ideias e emoções a fim de que se começasse a examinar o fenômeno de um modo mais sociologicamente fundamentado. A despeito de toda a variedade do debate, uma questão pareceu-me central: a avaliação do apartidarismo e do espontaneísmo voluntarista que informa parte dos movimentos, analisado, sobretudo, a partir de suas consequências políticas, ou pelo menos, das consequências que lhes foram imputadas por seus detratores e críticos.

Destaco duas críticas ao apartidarismo, com as quais concordo. A primeira delas credita ao discurso do apartidarismo, defendido com ardor por parte dos integrantes engajados na construção do movimento o fácil e rápido enquadramento e “invasão” de temas da pauta conservadora e da oposição. Dar às costas às instituições, inclusive aquelas que podem contribuir no embate de forças e negar-se a criar instituições próprias significa não possuir anteparos institucionais para enfrentar as reações, as reviravoltas e a disputa, o que deixa o movimento sujeito a tudo, inclusive aos oportunistas que fingem estar ao seu lado.

A outra crítica que se coloca na conta do apartidarismo e do pensamento espontaneísta-libertário é o de ter dado vazão e preparado o caminho para as agressões que os militantes de partidos sofreram na medida em que o déficit de institucionalização reflete-se, também, num déficit de legitimidade das decisões coletivas sobre as condutas e vontades individuais. O apartidarismo teria alimentado, de modo não premeditado e sem intenção, o forte sentimento de rejeição e ódio existente contra as organizações e associações políticas institucionais. A consequência foi nefasta; agressões, supressões autoritárias das bandeiras e da liberdade de expressão e associação.

De fato, a pura negação das instituições sem que o movimento crie e consolide-se a si mesmo como instituição, ainda que para se desfazer e se reinventar posteriormente, enfraquece e deixa o movimento vulnerável diante de uma arena de disputas e lutas contra grupos que agem e possuem a seu favor uma série de instituições; polícia, grande imprensa, justiça. Os espaços e as posições de poder, com seus respectivos capitais políticos e simbólicos, existem e são mobilizados pelos grupos que os ocupam e controlam para impor os seus interesses e visões de mundo.

Em política, não ponderar acerca dos efeitos não-intencionais das ações e do discursos e de como esses últimos podem ser apropriados e utilizados para reforçar e legitimar posições, convicções e ações contrárias e perniciosas aos propósitos perseguidos é um grave erro estratégico de cálculo político e de reflexividade acerca das condições, oportunidades políticas e correlações de força do campo em que se está inserido e lutando.

Pois bem, se por um lado concordo com as críticas que sustentam que o apartidarismo leva, muitas vezes, a uma postura antiinstitucional e de pouco reflexividade acerca das condições de disputa e das consequências em jogo na ação coletiva, por outro, discordo completamente da anulação das críticas que o apartidarismo e o pensamento espontaneísta libertário vem realizando contra os partidos e demais organizações em razão das fragilidades e contradições que eles portam e possuem. O acusacionismo é politicamente infértil, desagregador e não gera aprendizado algum para se avançar.

Ora, as contradições e deficiências do apartidarismo não blindam, nem eximem os partidos de suas próprias deficiências e vícios históricos e funcionais. O apartidarismo e o fortalecimento do discurso libertário são uma reação, um sintoma, que cresceram e ganharam corpo a partir do vazio, das falhas e incongruências das organizações políticas tradicionais – partidos políticos, sindicatos.

brasil_-_03746311_2Na dinâmica da ação coletiva e da construção dos movimentos contemporâneos, o apartidarismo e o pensamento libertário-espontaneísta possuem uma força ímpar na mobilização social, justamente por possuir uma afinidade eletiva com as insatisfações, desconfianças e anseios populares enquanto um discurso que apela aos sentimentos de indignação e de suspeita ao poder instituído. Além do mais, no interior das plenárias e assembleias, eles possuem um importante papel de contrabalancear a vontade de poder, o vanguardismo e a burocratização dos partidos políticos, assim como estes possuem o papel de controlar o voluntarismo e a postura política puramente negativa de rejeitar o instituído.

Mas, por que os partidos políticos sofrem tanto com a desconfiança e rejeição desses novos movimentos ditos “apartidários”?

Como ensina Max Weber, o decisivo na definição de partido político moderno não é sua orientação ideológica nem sua base social, mas sim a sua estrutura organizativa, isto é, seu caráter de máquina política organizada com fins próprios, o que não quer dizer que necessariamente ele não possa fazer aliança, somar e fazer unidade com outros interesses e organizações, significa apenas que os seus interesses políticos particulares estarão sempre presentes. Em qualquer situação em que os partidos estejam inseridos, eles disputaram a liderança e posições de poder para maximizar seus interesses específicos. Não há nada de errado ou ilegítimo nisso. O problema reside no relacionamento com outros movimentos, associações e organizações, regidas por uma outra lógica política. A parte menos instrumental das funções dos partidos políticos, a da organização dos anseios e das demandas da sociedade e a autoconstituição dos partidos enquanto canais de participação política pela sociedade civil, está muito aquém e colonizada pela função instrumental.

Não seria exagero afirmar que a história da evolução dos partidos políticos é a história de seu afastamento progressivo da sociedade civil e de sua aproximação cada vez mais íntima com o Estado. E isso, evidentemente, tem um preço, que se reflete na pouco credibilidade dos partidos junto à sociedade.

À medida em que a luta – legítima e necessária – dos partidos pela posições de poder o levaram a se inserir e supervalorizar cada vez mais os âmbitos da ação estratégica (Estado) e o cálculo político na arena eleitoral fez com que eles não apenas se tornassem mais distantes do mundo da vida, das questões cotidianas, das pessoas comuns, mas, sobretudo, apresentassem uma crescente dificuldade e inaptidão de oferecer uma linguagem apropriada e significativa para a expressão das aspirações populares e dos cidadãos. Mesmo os partidos de esquerda, historicamente dependentes de bases sociais populares sofreram esse revés. A ênfase na função governativa e na racionalidade instrumental para assegurá-la levou os partidos políticos a comprometer e deteriorar junto à sociedade sua função representativa e sua capacidade de comunicar e fazer sentir-se como parte da experiência social de dificuldade das pessoas. Eis a raiz da aversão e da crise de legitimidade dos partidos como organizações políticas legítimas.

Não se trata simplesmente de organizar, discutir reformas ou solucionar os problemas das pessoas, mas de se conectar à elas, de oferecer um linguagem de engajamento e solidariedade mútua, de construir uma política comunitária orientada na vida cotidiana, de cooperação, localismo. É nesse aspecto que os coletivos e novos movimentos, e o pensamento apartidário e libertário que costuma lhes afeiçoar, se sobrepõem aos partidos em termos de aceitação social, confiança pública e legitimidade junto à sociedade.

Essa conclusão pode ser ilustrada pelos diversos estudos em que se constatou, nas últimas décadas, nos países ocidentais de democracia relativamente consolidada, a queda de participação não apenas nas urnas mas da participação dos cidadãos em atividades partidárias, o aumento do engajamento dos militantes em organizações pontuais mais abertas à participação efetiva do indivíduo, o declínio da identificação partidária, a preponderância do voto pessoal. Evidente que os meios de comunicação e o discurso de despolitização da política tem um papel nesse quadro, mas é igualmente verdadeiro que as modalidades centralizadoras e hierárquicas de organização, a ênfase nas questões eleitorais da disputa e as práticas dos próprios partidos também são fatores indispensáveis a esse respeito.

Em que pese suas próprias deficiências e consequências, o apartidarismo deve ser levado à serio justamente naquilo em que ele pode contribuir em relação às carências discursivas e os vícios funcionais e organizativos dos partidos políticos, ou seja, a necessidade de uma nova linguagem e sua proposta de reaproximar novamente organização política e sociedade.