O poeta moderno é um exilado do seu próprio tempo, um “estranho” à sociedade que vislumbra verdades veladas e entrevê a perfeição perdida, o Ideal a ser buscado¹. Ka, protagonista do romance “Neve”, do escritor turco Orhan Pamuk, além de poeta, é também um exilado político. É nesse duplo exílio, sob o impacto da perfeição simétrica de um floco de neve – “a interminável repetição de um milagre banal” -, que Ka escreve poemas e vê “se desvelar o secreto sentido da vida”². Através do poeta, Ohran Pamuk fala de poesia, da unidade presente nos seres humanos e também de suas diferenças, do Ocidente e do Oriente, do “eu” e do “outro”.
“Neve” conta a história da curta visita de Ka (que, embora turco, morava em Frankf) a Kars, uma pequena e paupérrima cidade da Turquia. A cidade funciona no romance como o “espelho” daquele país, lugar de um complexo processo histórico e de intrincado mosaico ideológico, no qual se chocam curdos separatistas, azerbaijanos, islamitas fundamentalistas, secularistas, socialistas, militares, ateus e outros. Nesse caldeirão cultural, ocorrem, ainda na mesma cidade, o assassinato do prefeito e suicídios enigmáticos de moças que são proibidas de usar o manto na cabeça. Num período de três dias, o mesmo tempo da visita de Ka, a cidade fica ilhada pela neve e um golpe militar é “encenado”. Em vários momentos da narrativa, o limiar entre ficção e realidade é bastante indefinido, tanto em relação ao golpe, que realizado por um ator, já é sugestivo por si só, quanto a fatos que pertencem à não-ficção, como algumas coincidências biográficas entre, Ka, o narrador e o escritor.
A dicotomia Oriente-Ocidente é um conflito evidente na mentalidade turca e, consequentemente, na obra. Nota-se na sociedade turca de hoje o desejo de modernidade, de progresso e de assemelhar-se ao ocidental e ser aceito por ele. Porém, da maneira que essa busca vem sendo feita, além de não legitimar a aceitação pelo outro, a torna humilhante. O turco tem que negar a si mesmo: “para ser um verdadeiro ocidental, a pessoa deve primeiro tornar-se um indivíduo”², ou seja, tomar para si um conceito, o de indivíduo, fundamental na cultura ocidental e abandonar sua tradição, a vida integrada no corpo social. Orhan tenta mostrar que do orgulho ferido surgem o ressentimento, o ódio e o fanatismo – “recuso-me a ser um europeu, e não vou imitá-los feito um macaco” (diz Azul, um terrorista islâmico). No conflito, as pessoas acabam no limbo, divididas entre o nacionalismo extremado e a pura imitação premiada com o desprezo.
Para Orhan Pamuk, o romance teria o poder de fazer o leitor refletir sobre sua própria identidade e também sobre a identidade do outro. “Neve” seria, então, o recurso ao qual o autor recorreu para incitar o povo turco à reflexão, compreensão e reelaboração de sua identidade. Essa reflexão tornaria possível a aceitação de sua própria cultura e a assimilação da cultura européia, da qual não se pode fugir, criando uma amálgama que não mais desse vazão à imitação nem ao ostracismo. Além disso, o ocidental, por meio da leitura do romance, teria também a oportunidade de compreender melhor o Oriente. “Colocando-nos no lugar dos outros, usando nossa imaginação para abrigar as nossas identidades, somos capazes de nos libertarmos”³, ou seja, de diluir fronteiras entre indivíduos e amenizar conflitos. É também por essa razão que uma pergunta se repete incessantemente em “Neve”: “o simples fato de eu ler estas palavras me garante que eu as entendi?”.
Todo floco de neve, com seu formato hexagonal, é moldado por inúmeras “forças misteriosas” (vento, temperatura, altitude da nuvem etc.). Ka acredita haver similitudes entre cada indivíduo e o floco de neve – “as existências individuais podem parecer idênticas, mas para entender a própria singularidade, sempre misteriosa, basta traçar um mapa dos mistérios do próprio floco de neve”. “Neve” trata, antes de tudo, de pessoas e de poesia, da identidade em crise de um povo. Sim, é um livro que pode ser considerado político mas, de maneira alguma, retém seu mérito apenas nesta característica. Isto é, se é que podemos falar em “mérito” pela mistura de política e arte. Além do valor estético e da profundidade dos temas tratados, a leitura é agradável, flui com facilidade e ainda retrata um povo cuja mentalidade é surpreendente, talvez por ser tão diversa da nossa. É um livro que podemos chamar de revelador.
* O escritor Orhan Pamuk foi agraciado com vários prêmios literários. Entre eles está o Nobel de Literatura de 2006.
1 SCHILLER, Frederick. On Simple and Sentimental Poetry. Em: The Aesthetical Essays. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/6798.
2 PAMUK, Orhan. Neve. Trad. Luciano Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
3 PAMUK, Orhan. In Kars and Frankfurt. In: Other Colors. New York: Alfred A. Knopf, 2007.
Título original: Kar (Neve)
Autor: Orhan Pamuk
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 656
Ano de lançamento: 2011
Preço sugerido: R$ 62,00