– Por Ellen Paes
Sou mãe, jornalista e mulher solteira. Não sou mais tão jovem, tenho 30 anos e os áureos tempos de idealismo adolescente já passaram. Trabalho, cuido da minha filha de dois anos e, como qualquer brasileira, trabalhadora assalariada e moradora de uma grande metrópole (Rio de Janeiro), tenho jornadas triplas, por vezes, múltiplas. Sou ativista em alguns movimentos sociais, acompanho e apoio algumas causas, umas mais de longe, outras mais de perto, e acredito que devemos nos envolver em questões que contribuam para a melhora do país e diminuam as desigualdades porque o controle social é fundamental para qualquer tipo de mudança. Esse sentimento eu sempre tive guardado dentro de mim, mas ficou latente após nascer minha filha, para quem eu espero deixar um mundo bem mais digno.
Sou paulistana, morei em duas capitais do nordeste e em uma delas – Natal – vi começar um manifesto contra os aumentos abusivos do preço do transporte público. Aliás, escrever “aumento de transporte PÚBLICO”, pra mim, já é algo que soa irônico, uma vez que sendo público não deveria ser pago. E, uma vez pago, deveria ser bom e, se não é bom, por que devemos pagar ainda mais?
Utilizo o transporte público no Rio (metrô, trem e ônibus) e venho mostrando e falando dos problemas cotidianos desse serviço sempre que posso através das redes sociais. Veículos lotados, sucateados e sujos. Motoristas mal treinados, demora, insegurança e desrespeito. Já desmaiei grávida em metrô lotado e quente, já fiquei uma hora esperando um ônibus que, quando passou, não parou pr’eu entrar. E ainda quase me atropelou por estar fazendo sinal. Já perdi reuniões porque fiquei parada dentro de um trem quebrado, lotado e sem ar-condicionado num pico de calor de verão carioca de 45 graus.
Vi esse movimento pelo transporte nascer e desde o início considerei legítima a revolta popular natalense, apelidada de Revolta do Busão pela maioria dos manifestantes – jovens estudantes. Quando no Rio anunciaram o aumento, falei que, a exemplo dos natalenses, os cariocas também deveriam se unir à revolta e sair às ruas. Mas isso não é nada. Eu sou só qualquer uma. Eu sou povo. Muita gente já vem falando disso há muito mais tempo. Em São Paulo, o Movimento Passe Livre discute brilhantemente sobre tarifa zero e só começou a ser levado a sério agora. Muita gente nem o conhecia.
Éramos poucos no começo, mas a ação truculenta policial movida pela repressão estatal e midiática determinou que manifestantes eram vândalos-baderneiros que não tinham o que fazer. Mas o tiro saiu pela culatra. As redes sociais – salve, salve! – serviram para mostrar o que a grande mídia não mostrou. Pipocaram fotos e imagens reais de como um movimento pacífico se torna um movimento violento quando na presença de uma polícia despreparada. Aliás, despreparada não. Ela é bem preparada sim, mas como bem disse o comandante do pelotão paulistano: ela é preparada pra atacar e não pra conversar. Eles não são sociólogos… Pois é, sabemos bem – quem levou gás na cara como eu e passou dias com garganta e nariz fechado sabe bem disso. Nem preciso citar o famigerado caso da minha coleguinha repórter que, sem fazer nada, levou o tiro no olho que virou campanha de famosos.
Testemunhei e sofri na pele, no sistema respiratório e na alma com gases de pimenta e lacrimogêneo e bombas de efeito moral. Moral mesmo! Vou te falar o que é um lindo efeito moral: é uma polícia jogar bomba em gente que está clamando contra a violência e isso fazer com que uma multidão de gente nas redes se unisse contra a repressão. Isso é que é um belo tiro de borracha – no próprio pé.
Quebrar viaturas, manipular televisões, desligar câmeras das ruas foi um belo impulso pra instigar a opinião pública e até dos reacionários de sofá – aqueles que adoram criticar o ativismo social. Jabores e Sheherazades com seus rabos presos e uma placa em São Paulo deixa a resposta e o recado: NÃO EXISTE JABOR EM SP. Pelo jeito, ele não me comoveu e não deve ter convencido tanta gente assim. E assim caminha a humanidade… ou a mídia?
No dia 17 de junho eu participei de um manifesto lindo. Eu vi o país colocar mais do que um estádio de futebol na rua – a maior arquibancada do Brasil. O hino da manifestação, que, por ironia, foi feito para um jingle de propaganda de carro, caiu como uma luva pra falar do real vandalismo do país.
Aquele vandalismo que remove pessoas de suas casas para construir vias que facilitem a passagem de carros que circularão na copa. Aquele vandalismo que detona uma aldeia indígena e atira em crianças pra construir estacionamento. Aquele vandalismo que destrói escolas e museus. Aquele vandalismo que esconde usuários de drogas pra higienizar as principais vias da cidade e não dá tratamento digno a quem está doente. Aquele vandalismo que transforma estuprador em pai. Aquele vandalismo que impede que mulheres tenham liberdade pra decidir sobre o próprio corpo. Aquele vandalismo que deixa novos cidadãos nascerem em corredores de hospitais sujos e superlotados. Aquele vandalismo que chacina a juventude negra, que corresponde a 75% das vítimas de armas de fogo, geralmente, em confrontos policiais. Aquele vandalismo que ocupa uma favela e faz os moradores viverem sitiados. Aquele vandalismo que gasta 33 bilhões de reais na copa e 26 bilhões nas Olimpíadas, enquanto todo mundo sua e faz ginástica no orçamento todo mês pra acompanhar o aumento do custo de vida nas cidades-sede em um país onde o salário mínimo é pouco mais de 600 reais.
O verdadeiro vandalismo, nessa manifestação, eu testemunhei: centenas de pessoas feridas e que podem ficar com sequelas por toda a vida porque estavam na rua pedindo respeito e denunciando tudo o que sofrem há anos. Devo não pensar nisso só porque o prejuízo pessoal delas não vai pesar no meu bolso? E quanto a todas as outras coisas que saem dos nossos bolsos há anos e ninguém falava nada? Ninguém não. Os movimentos sociais estão aí denunciando há tempos, só não estavam sendo ouvidos.
Vocês estão preocupados com o muro pichado? Com invasão e depredação de patrimônio público? Com um carro incendiado? Eu não. Tem gente por aí que apanha do sistema há anos. Que leva na cara de verdade. Que é preso por ser pobre e relegado a viver num sistema prisional falido e sair de lá mais excluído do que quando entrou.
Sou contra violência, mas tenho consciência que, pra mim, que nasci na classe média baixa, migrei pra classe média alta e voltei pra classe média-média (existe isso? rs) que rala, rala e rala, é muito fácil ser pacífica. Estudei em boas escolas, fiz aulas de dança e yoga e aprendi a respirar. É muito fácil ser pacífica assim. Tive boas oportunidades na vida, trabalhei e estou batalhando uma boa colocação no mundo. É muito mais fácil ser pacífica assim. Mas tem muita gente que leva cacetada na cara e vai se manifestar com sangue no olho e eu não tiro a razão deles. O que você chama de vandalismo eu chamo de revolta popular. E revolta é revolta. Vide livros de História.
Somos cem mil, uma massa heterogênea e diversa com demandas também diversas e algumas causas em comum. Cada um luta com a arma que conhece. Tudo o que está sendo destacado não tira o brilho dos que estavam fazendo o protesto mais emocionante que eu já vi acontecer nesses meus curtos 30 anos de vida.
Sou mãe e trabalhadora – não tenho medo de me comprometer e de tomar um lado. Não é sobre 20 centavos, é apenas a gota d’água. Como bem disse uma amiga, mãe e também ativista: na Turquia, uma árvore. No Brasil, 20 centavos. Não importa. O que não deve ser tolerado é opressão.
E enquanto alguns latem, nós lutamos. E, no final, só espero que tanto eu, quanto todos, saiamos mudados dessa história. Qualquer transformação começa de dentro pra fora. E essa explodiu os limiares pessoais. Como diria o nosso saudoso Chico Science, “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”.
#VEMPRARUA
Dia 20 tem ato nacional. Vamos todos e diversos compor uma só voz.
Ass: Ellen (Vagabunda Baderneira Temperada de Vinagre e Pimenta) Paes.