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Olhos de cílios azuis

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Por Andréa Monteiro, Professora do IF do Sertão Pernambucano

 

images (1)Enquanto eu ouvia pelo iPod a batida dos Strokes, naquele dia, na esperança que acontecesse algo diferente, Carolina programava assistir a um filme em uma das salas de cinema do shopping da cidade. Antes disso, ela se dirigiu a uma das lojas de fast-food para fazer uma de suas refeições diárias. Na fila do caixa, algo lhe chamou a atenção. “Ela tem os cílios azuis”, falou para si mesma, contemplando a composição com a face escura da atendente do caixa. Carolina não percebeu, mas, olhar os cílios azulados da atendente prendeu a sua atenção durante e depois do uso do cartão de crédito, provocando uma curiosidade leve e além do normal. Não sabe ela que o olho é a porta da alma, da curiosidade, é a via da aproximação e da descoberta do desconhecido. Enquanto come, seus dedos habilidosamente correm na tela touchscreen do celular presenteado por sua namorada do Facebook, residente em San Francisco. Pouco mais de 72 horas foram suficientes para que o serviço de entregas rápidas unisse a costa leste norte-americana e o semiárido nordestino. E somente naquele momento Carolina começou a “ver” o que acontecera em uma apresentação musical a qual estivera no sábado passado. Carol é antenada e utiliza todos os recursos disponíveis em seus aparelhos eletrônicos. Para o seu deleite, o novo celular tem uma câmera que grava e arquiva os acontecimentos, os quais são selecionados para serem vistos posteriormente, de acordo com o seu interesse.

A evolução tecnológica, impulsionada pela dinâmica econômica globalizada, tornou-se uma força sem precedentes, transformadora do homem, de suas experiências e da realidade.  Uma imagem fotográfica postada na internet registrou como o anúncio do novo papa foi recebido em 2013: as câmeras foram os olhos da grande maioria dos presentes na Praça de São Pedro. Não foram os olhos dos humanos que enxergaram aquele momento, mas, sim, as tela dos aparelhos eletrônicos.

A penúltima passagem do cometa Halley próximo à órbita da terra, em 1910, provocou um abalo inquietante em um grande número de pessoas.  Elas olharam em direção ao céu, com medo ou curiosidade. Aqueles que vivenciaram esse acontecimento embalados pelo pânico deixaram de experimentar a sensação de transcendência que tal espetáculo tem o poder de provocar. Em 1986, a aparição do mesmo corpo celeste foi transformada em espetáculo televisivo, e Carolina, ainda criança, já estava em frente a uma tela apreciando os reflexos da imagem do cometa. É bem provável, que, em 2061, data da próxima passagem do Halley pela órbita terrestre, nós não o enxergaremos mais. Porque atribuiremos essa tarefa às telas cibernéticas, que, naquela altura, já estarão conectadas internamente em nossos corpos. Esses instrumentos terão incorporado e ampliado capacidades que, hoje, nos distinguem como humanos. Quem não vai querer um implante de última geração que capta a imagem, amplia, limpa os efeitos indesejáveis e ainda arquiva para você usá-lo quando tiver vontade? O mundo vai ficar mais bonito enxergado pelo filtro do Photoshop. A vida será, então, plena de boas sensações. Tudo o que desejamos.

Mas, o que podemos pensar quando a primeira porta de interação com o mundo, nossa visão, passa a ser mediatizada por outros dispositivos? O que ocorre quando a nossa visão sobre o mundo e as coisas é obliterada pela mediação de um aparelho, no qual as imagens são captadas e partir delas passamos a viver a vida? Ou, melhor, qual a potencialidade de redefinição das experiências e dos tipos de relações que a predominância do mundo das imagens pode estabelecer entre as pessoas?

No caso da nossa cinéfila, ela está muito satisfeita com sua namorada do Facebook, mesmo sem conhecê-la pessoalmente. “Olha, ela é linda demais. E adora comida japonesa!”, uma sonoridade meiga e delicada pronuncia a última frase, enquanto revista imagens de refeições no Instagram e admira a foto da amada.

Se por um lado, cada vez mais, temos pessoas que preferem viver os acontecimentos através das telas e imagens, por outro, aumenta o número daqueles que se negam a estabelecer relações de proximidade ou intensidade com outros. Pesquisas atentam para o futuro dos modelos habitacionais potencializados pelo desejo de morar sozinho de muitos brasileiros. “Não, não quero mais morar junto com ninguém. Eu quero encontrar um amor, mas cada um na sua casa.” “Eu terminei com o meu namorando porque ele saiu da cidade dele para vir morar na minha casa.” “Depois de certo tempo, começam a aparecer as diferenças. Aí, já se sabe o que acontece.”

Nessas projeções sobre um futuro não tão distante, nossas casas serão ilhas paradisíacas conectadas em algum ponto do tempo e do espaço, através das infinitas possibilidades que as tecnologias digitais disponibilizarão. “Bom, Darling, a água do café já está esquentando. Não esqueça, hoje é dia da visita ao massagista. Sua namorada enviou as fotos da última viagem. Quer dar uma olhada agora?” Você vai acordar, no seu apartamento de 29m², com a voz simpática da secretária doméstica computadorizada que vai assumir todos os espaços da sua casa e da organização da sua agenda diária, sem incômodos ou reclamações.

Quando Carolina e tantas outras pessoas passam a introduzir mecanismos eletroeletrônicos – câmeras, celulares, etc.- para se relacionar com o mundo, elas estão também modificando a sua própria natureza e preparando o terreno para a construção de uma realidade multidimensional. Tomando como referência a ideia de Walter Benjamim de que a reprodutibilidade técnica das obras de arte teriam produzido o enfraquecimento da aura e a diminuição das experiências singulares da contemplação, podemos supor que ao introduzirmos um dispositivo estranho ao nosso corpo, o qual passa a “enxergar” por nós as sensações e a produção de carga de energia nos circuitos nervosos sofrerão alterações. Mas, o que significa isso no que diz respeito a sensibilidade e subjetividade humana?

Ora, de fato, com a introdução de elementos tecnológicos como mediadores das relações interpessoais estamos socialmente comprimindo o tempo e estendendo o espaço. Theodore Zeldin, em uma História Íntima da Humanidade, lembra-nos que devemos deixar para trás o medo, por ser um dos obstáculos que nos impede o exercício das potencialidades que nos humanizam. Precisamos abandonar o medo, não as pessoas. Pois se assim for, seguimos rumo a um futuro onde as relações interpessoais e as consequentes experiências sensitivas serão marcadas por um platonismo radical. Um platonismo, diga-se de passagem, extremamente negativo, uma vez que conduzirá nossa existência a um errante vazio de infindáveis conjecturas do que aconteceu ou deixou de acontecer. O menino-robô do filme Inteligência Artificial, cuja “existência” gira em torno da espera pela resposta afirmativa do ser amado, nos faz entender porque a resposta que preenche o nosso vazio está contida apenas e tão somente em um outro, não em imagens. Do contrário, nossos desejos e sonhos se “realizariam” pela contemplação da imagem, e não através da relação dialógica com a riqueza singular (defeitos e virtudes) que cada pessoa possuí. A rejeição e o medo em não ser compreendido, de ferir ou ser ferido, de agredir ou ser agredido, de incomodar ou ser incomodado, de sofrer, de não ser correspondido ou reconhecido, dentre muitos outros medos demasiadamente humanos, levam-nos a buscar um caminho limitado que nos distancia das melhores possibilidades que a nossa humanidade contém. Esse caminho nos conduz a uma gastronomia do olhar. Acreditaremos nas imagens, imaginaremos suas texturas, sabores, sonoridades e perfumes. E, assim, as relações entre pessoas de carne e osso terão se tornado coisas do passado.

O futuro já pode ser bastante previsível: humanos-cibernéticos é uma das possibilidades que o presente anuncia. E essa potencialidade está contida no cotidiano de Carolina, cada vez mais entremeado pelo uso das novas tecnologias de informação. Ainda temos tempo de dar uma chance às possibilidades de vivenciar as experiências através dos corpos celestes que atravessam nosso raio de ação com as nossas capacidades humanas “originais”. E tempo também de recordarmos que o encontro de corpos de carne e osso, plenos de desejos, vontades e medos, ainda é infinitamente mais potente do que o encontro onanista dos corpos virtuais nas redes sociais.

Nesse instante, a função aleatória do iPod foi ativada, pode-se ouvir Bach em Sonatas e partidas n.2, e Carolina percebendo a hora e segue em direção ao salão de entrada do cinema.