Poucas capitais no Brasil são tão reacionárias e refratárias a mudanças sociais e de mentalidade quanto Natal. Seus traços modernos, tão presentes em sua economia de serviços, contrasta com a mentalidade provinciana e antiquada que afeiçoa boa parte das consciências de seus moradores, em particular dos estratos da classe média tradicional, mais íntimos que são aos poderes locais.
Em Natal, somente a mudança, quase ininterrupta, da paisagem física e geográfica da cidade é vista com bons olhos, sobretudo quando se trata de desmatar para erguer novos empreendimentos imobiliários ou demolir para construir “elefantes brancos”. Em contrapartida, as mudanças nos comportamentos, na cultura e no agir político são extremamente desprestigiadas, desincentivadas e difamadas pelos setores tradicionais da cidade. Estes censores do presente, profetas e sacerdotes da gorda mentalidade provinciana natalense, povoam os mais diferentes espaços sociais, da imprensa ao judiciário passando, inclusive, pelos bancos das salas de aula de universidades.
Para ser mais preciso, não é a cidade de Natal que é extremamente reacionária e conservadora, mas sim os setores que formam sua elite do poder, os quais pela força política, econômica e midiática que possuem, pelo prestígio social de que gozam e pelo controle que exercem sobre as posições institucionais chave conseguem impor e fazer reproduzir uma visão particular da cidade enquanto representação hegemônica e universal. Uma representação da cidade e de seus moradores que é assimilada, sobretudo, pelas camadas médias natalenses. É a defesa da visão provinciana e de sua mentalidade segunda a qual Natal seria uma cidade “pacata”, “hospitaleira”, dada mais ao lazer e à confraternização do que à política e ao antagonismo, formada por pessoas ordeiras e passivas mais do que por pessoas interessadas em ativismo e militância, por pessoas que mais baixam à cabeça diante do poder do que o enfrentam, o que está em jogo.
A #RevoltadoBusão e os outros movimentos dos últimos anos atentam precisamente contra a visão acima, contra a “cultura política”, o imaginário e autoimagem de Natal que as elites natalesenses construíram e impuseram. É a partir desse pano de fundo simbólico que devemos entender, também, as ações do juiz que proibiu, e reiterou a proibição e o uso da força, qualquer manifestação na BR-101, o enquadramento criminalizador da PM e as ações sensacionalistas e alarmistas da imprensa com respeito às mascaras, capuz e pneus queimados, rotulando-as, para deslegitimar o movimento, como sinais do seu vandalismo.
Mas as contradições entre aquilo que os pretensos “Donos da Cidade” afirmam estarem à serviço, quer dizer, a defesa da paz e dos direitos do cidadãos natalenses, e sua prática são facilmente identificáveis. Por exemplo, em nome da “ordem pública”, do sagrado direito de ir e vir e da proteção da indefesa população natalense, o juiz federal Magnus Delgado se ergueu com a maior convicção do mundo para impedir manifestações políticas, inclusive autorizando o uso da força se necessário. Porém, onde foi parar o empenho e a convicção jurídica da justiça na defesa da ordem pública e do direito de ir e vir quando, ontem 06/06, durante um protesto pacífico, os empresários decidiram “recolher” seus ônibus, privando a população de um serviço público e essencial? Ou então quando estudantes foram massacrados por balas de borracha, cassetetes e toda sorte de truculência policial? A seletividade dos órgãos de justiça é sintomática na revelação dos laços e “lados” que em geral eles cultivam.
A imprensa tradicional local não cansa de tagarelar acerca dos “transtornos” que os protestos causam. E, no entanto, emudece docilmente contra o autoritarismo dos empresários e o transtorno e prejuízo que a decisão de retirar os ônibus de circulação causou. Ao que parece, pneus queimados e rostos encapuzados chocam mais do que transporte público caro, precário e irregular. De modo que, o engajamento político e a defesa de direitos são transformados em “perturbação da ordem” e ação de vândalos e pessoas mal-intencionadas.
Ora, o que prejudica à população de Natal não são os estudantes e os demais manifestantes da #RevoltadoBusão, mas sim os aumentos de passagens, motoristas com dupla-função, ônibus precários e irregulares, o recolhimento dos ônibus num protesto pacífico e, principalmente, um pacto social sobre a prestação de um serviço público e essencial de mobilidade que só beneficia os empresários e lesa os usuários de transporte.
O reacionarismo natalense, ou melhor, das elites políticas e econômicas da cidade, manifesta-se como maior agudez quando as ficções criadas e sustentadas sobre cidade estão ameaçadas. Os protestos e manifestações políticas podem não somente mudar as relações de força, como também as relações de sentido. E, com isso, suscitar uma mutação simbólica mais ampla com a formação de novos consensos e representações, desestabilizando assim os valores, as orientações políticas e afetivas de identificação e as crenças que legitimam o conformismo, o fatalismo e os sentimentos de ligação com os poderosos.
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Fotos:
Imagem princial: Brenda Lívia
Imagem do texto: Vanusa Maria