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O Acordo

          Da série “Historietas do Regime”, parte II.

 

Nas catacumbas de certo Regimento de Infantaria, os militares tinham a horrorosa mania de torturar os presos perante suas celas. Com a finalidade de intimidar os demais detentos, satisfaziam sua lascívia por meio de um ambivalente sadismo: a tortura física nos que estavam fora da cela e a psicológica nos que se encontravam dentro.

Conseguiam de fato atingir os seus objetivos: as abjetas cenas de choques, afogamentos e espancamentos se alojavam confortavelmente na memória dos presos, comprometendo seu sono, sanidade e saúde. O recrudescimento do tratamento dispensado pelos militares deixava evidente o completo desprezo que nutriam pela vida; qualquer pessoa que contivesse um mínimo de consciência e sensibilidade não conseguiria naturalizar a tortura como um trivial ofício cotidiano da forma com que faziam.

Certo preso, ilustre dentre outras coisas por suas sagazes e inflamadas eloquência e militância, teve a altivez e ousadia de interpelar um dos capitães responsáveis por aqueles grotescos espetáculos de compulsório voyeurismo. Não se preocupou em rogar-lhe para que cessassem com as torturas. Sabia que tirar o brinquedo das crianças era praticamente impossível. Sugeriu, então, que os suplícios fossem ao menos realizados longe dos olhares dos detentos.

O capitão, em um raro lampejo de solidariedade, acabou por dar ouvidos ao preso, mesmo que com relutante desconfiança; cedeu, visto que as torturas, passatempo preferido do seu batalhão, não iriam, afinal, se dar por cessadas. Uma vez conseguindo a anuência do militar, sugeriu o detento que firmassem por escrito o acordo. Não vislumbrando qualquer problema, o responsável comprometeu-se, consignando a negociação em papel com sua firma.

Além da truculência, as forças da repressão eram conhecidas também por sua ignorância e estupidez. O detento negociador sabia perfeitamente disso. Jogando com a falta de perspicácia do seu algoz, conseguiu uma categórica prova documental de que, para o desespero do enfático discurso oficial à época, havia sim tortura nos porões do regime.

O documento foi prontamente enviado ao então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Pessoa Câmara, que, deparando-se com aquela inusitada, perturbadora e involuntária confissão de tortura, acionou os competentes mecanismos globais, causando grande constrangimento ao Estado brasileiro perante a comunidade internacional – o mesmo Estado que, é importante frisar novamente, trombeteava aos céus a sua intransigente postura de combate a qualquer espécie de tortura, objeto, inclusive, da capa de certo semanário de propriedade de tradicional e reconhecida famiglia detentora de extenso poderio na mídia impressa até os dias atuais.

Quanto ao capitão e seus subordinados, com quem iriam reclamar? Com a polícia? Com o exército? Com os seus superiores?