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Apêndices de abismos: a lógica demoníaca da autoridade

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Por Clayton Marinho

Obviamente, que iniciarão questionamentos acerca da responsabilidade do Governo do Estado e demais órgãos competentes sobre a violência contra o estudante no movimento contra o aumento da passagem de ônibus, a “Revolta do Busão”. Em meio às exclamações das pessoas que fizeram várias filmagens do evento, uma pergunta que fica em suspenso, e que antecede a responsabilidade governamental, está na forma violenta como pessoas, antes de serem policiais, utilizam-se para abafar o movimento. Muito gritarão aos sete ventos e mais dois oceanos que a Polícia está organizada com psicopatas, indivíduos sem moral, perversos e mentalmente desequilibrados.

Contudo, essa “contingência” que determina a postura dos policiais, apelando para o irracional como resposta ao ato de violência, cega aqueles que se valem dessa noção, transformando-a somente em “aporia”, da verdadeira possibilidade, que está intimamente relacionada com a forma administrada da sociedade. Assim, pode-se perceber que o problema não é uma causa mística, de um rompimento psíquico, que acomete o policial e o faz cometer tamanhas barbaridades, contra estudantes. Pelo contrário, a forma, que nitidamente é representada pela Polícia (e Forças Armadas em geral) é seu caráter hierárquico e repartidor de obrigações. Incrivelmente, seguindo o entendimento de ZygmuntBauman em “Holocausto e Modernidade”, são esses critérios, além de tantos outros, que se constituem como uma ameaça à sociedade, na medida em que não há consciência (ou a necessária) disso, para vigiar.

Resumindo, quando alguém é incumbido de uma tarefa, a responsabilidade pelos atos do indivíduo são transmitidas (social e psicologicamente) ao emissor da tarefa. O indivíduo que a executará, caso transgrida as noções éticas de comportamento, sabe quem responsabilizar por seus atos. Dessa forma, ele, mesmo negando ou não sabendo conscientemente, é “acometido” de liberdade para agir e sua consciência é enfraquecida na medida em que possui um escape de compensação pelos seus atos vis – caso ocorram. Isso parece recair na lógica da culpabilidade do criador, por exemplo. Contudo, essa noção não é suficiente, mas já libera o agressor (o policial) a cometer algo que ele não faria “por livre e espontânea vontade”. Se se lhe fosse perguntado, certamente afirmaria jamais cometer tal barbaridade ou consideraria bárbara a narração de alguém cometendo o mesmo fato.

Integrar uma corporação também é outro fator. Ao ser policial, o indivíduo dilui-se no homem genérico, no “policial”. Ele não possui identidade própria, particular que o faça reconhecer-se como homem. Poderíamos dizer, histericamente, que esse homem abandona sua particularidade e adquire a imagem inumana da corporação, logo, inumano. A lei é inumana. Ao universalizar, com vias a cobrir toda a sociedade, ela perde sua face afável, como requisito para compreender cada ser humano em um conjunto uniforme de comportamentos, submetendo todos à lei. Além disso, os deveres são repartidos, tornando-se muito mais fácil encadear um verdadeiro massacre. Aqueles que responderiam pelo excesso de violência, também não se culpam, porque há uma desconexão entre o seu trabalho (por exemplo, assinar um pedaço de papel) e o resultado. Mesmo que o papel assinado seja o de uma chacina, tudo se resolve para esse indivíduo, numa canetada no papel, uma irrisória quantidade de tempo, que não o permitiria perceber as consequências de suas ações. A divisão do trabalho permite, facilmente, a alienação da ética e das crenças particulares, porque se perdem em meio às papeladas, aos carimbos e aos relatórios técnicos (gráficos, planilhas e cálculo de custos).

Mais uma vez, obviamente, isso não justifica de maneira alguma a ação da polícia, embora coloque em evidência que o “mal” que o causa não seja da ordem do irracional, mas da maneira racional como a vida é administrada para comportar a multidão. Um movimento não deve ser o primeiro passo, mas se chega a acontecer (porque não adianta ficar na posição de se questionar “como o movimento é possível?”) é hora de refletir sobre os passos seguintes e como se pode colher frutos desses resultados. Nem sempre a práxis deve suceder à reflexão. Muitas vezes, o chamado da história e da vida nos obriga a agir primeiro e pensar depois, mas aí já vemos que estamos em estado de sobrevivência e não mais de qualquer vivência; reduzimo-nos ao estado primário daquilo que se chama humano. Tentar desvelar essa “realidade ficcionada – ficção do real” é o primeiro passo para uma reestruturação do social, do cultural, e principalmente, do humano.