Tendo como característica uma profusão de personagens em dramas paralelos que se interligam por alguma tragédia, Alejandro Gonzalez-Inarritu (Amores Brutos, 21 gramas, Babel) desta vez centraliza a ação em torno de um único protagonista interpretado aqui pelo talentoso Javier Bardem. Embora, como de costume, ele insira outros personagens que vivem seus próprios dramas, suas próprias tragédias, a ligação entre eles é mais palpável, mais próxima, e não limitada a algum elemento casual como nos filmes anteriores. Ele parece ter feito um filme mais enxuto, mais contido na fragmentação dos diversos dramas que são comuns nos seus filmes. Aqui é o protagonista que serve como ponte que une esses poucos dramas paralelos.
Uxbal (Javier Bardem) vive de negócios ilícitos para sustentar os dois filhos, gerenciando vendedores ambulantes e a mão-de-obra clandestina de um chinês e seu amante numa fábrica que dá “abrigo” e explora o trabalho de outros imigrantes chineses. Separado da mãe dos filhos que sofre de transtorno bipolar e tem um caso com seu irmão, Uxbal tem ainda o dom de conversar com espíritos dos mortos e aproveita esse dom para ganhar uns “trocados” da família deles. Para piorar sua vida já difícil, ele está com câncer na próstata e o médico lhe dá apenas poucos meses de vida.
Embora o elemento mediúnico, bastante explorado por Hollywood em filmes como Sexto Sentido, por exemplo, e pelo recente cinema “espírita” brasileiro, esteja presente, Inarritu trata dele de forma mais ou menos sutil. Digo “mais ou menos” pois, mesmo que seja esse elemento que amarre as extremidades da projeção, nas primeiras e últimas cenas, e sirva como leitmotiv para o filme, os espíritos do filme são mostrados de forma contida, como se olhássemos para eles pelo canto do olho. E não de uma forma que queira provocar sustos, pois tal efeito não é a intenção do filme. Eles, os tais espíritos que o protagonista interage, não tem fala nem são mostrados em primeiro plano (com exceção de um importante momento do filme). E suas aparições são breves, resumidas a pouquíssimos frames. O elemento metafísico, apesar de importante para a trama (o acúmulo de mariposas, por exemplo, no teto do quarto à medida que a morte se aproxima serve como elemento simbólico que liga as preocupações urbanas do protagonista com o universo espiritual), não é, necessariamente, o foco principal, embora amarre o roteiro como comentei antes. A questão da imigração, por exemplo, tem destaque nesse filme, onde a maioria luta pela sobrevivência e o medo de ser deportado ou ter que sair do país por não ter como sobreviver nele. E há, provavelmente, esse mesmo medo em Uxbal, o medo de ser deportado da própria vida num paralelo ao drama dos personagens imigrantes que tem na permanência no país algo que pode ser dramaticamente interrompido, assim como pode ser interrompida de uma hora para outra nossa permanência na vida.
Às vezes, parece que o elemento metafísico inserido no enredo tem como finalidade retirar um pouco o protagonista dessa realidade tão difícil de sobrevivência e responsabilidade com aqueles que dependem dele, entretanto, até mesmo esse elemento se mostra tão difícil quanto a vida “real”. Na verdade, ela se mostra aqui como outro aspecto da vida real. Existe uma urgência de deixar tudo em ordem antes de partir, não somente para os filhos que ele deixará no mundo, mas por todos aqueles que estão ligados a ele através dos seus negócios. Dos imigrantes chineses que dormem no chão da fábrica à família do vendedor ilegal que está na cadeia. No entanto, a vida parece não querer facilitar sua passagem para o outro lado. Então vemos o gradativo desespero de Uxbal na tentativa de cumprir suas obrigações com os outros enquanto a morte se mostra inexoravelmente próxima. E, no fim das contas, nós não torcemos para que o personagem seja curado e sobreviva a doença, essa esperança nós perdemos logo no início do filme, mas que ao menos seus filhos possam ter alguma, já que para todos os outros personagens o mais difícil é manter algum tipo de esperança enquanto todo o resto parece desabar a seu redor, principalmente para o próprio Uxbal.
Mas, em um dos momentos do filme, ao consultar uma amiga xamã (não fica muito claro quem é ela, resolvi tratá-la aqui de xamã por causa da intervenção mística através do seu curandeirismo e dos seus conselhos, em todo caso ela se apresenta como um provável arquétipo do velho sábio), recebemos o que talvez seja a maior lição do filme: quando Uxbal mostra sua preocupação em relação aos filhos sem ter idéia de quem vai cuidar deles, pois a própria mãe se mostra incapaz disso por causa da sua instabilidade emocional, a xamã lhe diz: “Acredita que é você quem cuida das crianças? Não seja ingênuo. O universo cuida deles”. Ele, entretanto, retruca: “É, mas o universo não paga o aluguel”.
E, particularmente, acredito que é neste diálogo que está o núcleo em que se sustenta todo o enredo.
Outro elemento simbólico no filme é a neve. Ela está presente no início e na última cena, e ainda é citada em certos momentos do filme como um desejo das crianças que não a conhecem e uma referência à morte do pai do protagonista, mostrando dessa forma, talvez, como símbolo de uma espécie de paraíso muito desejado.
Embora alguns considerem o pior filme de Inarritu (como vi numa crítica), eu vejo Biutiful como sinal de amadurecimento, pois, apesar da sua narrativa complexa, ele consegue centralizar a trama em um único protagonista, se contendo em poucos dramas paralelos que não dispersam nossa atenção como nos seus filmes anteriores. E, afinal, é ao se concentrar na comovente atuação de Javier Bardem que Inarritu mostra seu principal trunfo.
Título original: Biutiful
Lançamento: 2010 (México, Espanha)
Direção: Alejandro Gonzalez-Inarritu
Atores: Javier Bardem, Maricel Álvarez, Hanaa Bouchaib, Guillermo Estrella.
Duração: 147 min