Search
Close this search box.

Dois conceitos dentro da Revolta do Busão: o caso da polícia

Compartilhar conteúdo:

Parece mesmo que o poder público estava demorando a responder pra valer aos protestos contra o aumento de passagens de ônibus em Natal. Estaria demorando de propósito? Ora, nas passeatas que aglomeraram centenas de estudantes e moradores da cidade, sempre houve escolta policial. Houve bala de borracha, spray de pimenta… No último protesto realizado nesta quarta-feira, porém, a estratégia da polícia foi mais refinada: afugentaram os estudantes pela Salgado Filho, à altura do Portugal Center, de onde começaram a disparar balas de borracha. O que ninguém esperava era o encurralamento: no viaduto, mais policiais aguardavam os revoltosos (sem queixas, por favor: se você achar que estou contra o protesto, leia o resto do texto com calma), já dispersos.

Isto, na verdade, é só um pedacinho do que houve, e mesmo assim incompleto. Não estava em Natal quando aconteceram os protestos. Mas não pude deixar de lembrar de duas idéias em filosofia política, que têm tudo a ver com o estado de coisas na cidade. O primeiro deles se manifesta claramente na própria polícia. Walter Benjamin, em um ensaio elogiado por Carl Schmitt (de quem tratarei logo em seguida), discutia a questão da violência – ou melhor, da violência e do poder: o termo “Gewalt” em alemão cobre simultaneamente o que, em português, separamos em duas palavras. De acordo com o filósofo, a polícia possui em seu bojo um duplo aspecto, por ser, ao mesmo tempo, fundadora e mantenedora do direito. A polícia é uma instituição pública fundada pelo direito e seu dever, em tese, é manter a ordem legal de onde emerge. Mas é a única (além das forças militares) em que ambas as dimensões se dão a um só tempo: seu raio de ação não é delimitado claramente, e freqüentemente se comporta como se fosse a própria legisladora de seus atos. Isso se torna ainda mais contundente quando observamos que os argumentos favoráveis e contrários à Revolta do Busão (e, a fortiori, da repressão policial) se mostram passíveis de suspensão. Os manifestantes afirmam que o protesto foi pacífico, ao passo que os policiais supostamente atacaram em retaliação. O que deve ser claro é o seguinte: sendo o protesto pacífico ou não, sendo a polícia atacada ou não, havendo ou não infiltrados no protesto pra detonarem a repressão policial – nada disso é realmente relevante diante do duplo aspecto da polícia, que, virtualmente, pode exercer a repressão a seu bel-prazer. Casos extremos disso são as milícias cariocas e os grupos de extermínio. Recomendo a leitura de um livro-reportagem de Caco Barcellos (que li faz séculos): “Rota 66 – A História da Polícia que Mata”, no qual o jornalista narra os desmandos das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, no Estado de São Paulo.

Já o segundo se refere à idéia de política. Carl Schmitt, o filósofo a quem me referi acima, define a política em termos de guerra. Dois lados, basicamente: amigos e inimigos. Ele pondera, no entanto, que não se trata meramente de qualquer inimigo: o alvo da política é o inimigo público, que oferece perigo à manutenção do Estado. Inimigos privados (digamos, o vizinho incômodo que bate nos filhos, na mulher, joga lixo na casa ao lado ou simplesmente torce pelo ABC, em vez do América) não são levados em conta. O mais curioso é um paradoxo: indivíduos amigos na vida privada eventualmente podem se tornar inimigos na esfera pública. (Jacques Derrida expõe detalhadamente esse paradoxo em “Políticas da Amizade”.) O objetivo da política é, finalmente, aniquilar o inimigo; inversamente, quando se neutraliza a figura do inimigo (como Schmitt alega existir na democracia parlamentar de cunho liberal), é a própria política que se perde. Pois bem: não seriam os protestantes inimigos públicos do Estado natalense, potiguar, brasileiro? A polícia, enquanto braço armado do Estado, serve duplamente: combater os inimigos (quaisquer inimigos – pacíficos ou não) e salvaguardar o interesse, se não de seus amigos, de um setor que se vale há muito tempo da negligência pública (que tem em seu sintoma principal a inexistência concreta de um edital de licitação) (1) no contexto do transporte coletivo: o SETURN.

Alguém pode contra-argumentar, afirmando que não se trata, por parte da polícia, de nenhum desses casos extremos (pelo menos no contexto do protesto que houve esta semana). Os policiais não quiseram matar ninguém, mesmo com a truculência com que trataram os revoltosos. Será que não? Um discurso de ódio espalhado tanto por fardados quanto civis me deixa seriamente cético. No calor da repressão, uma bala de borracha não mata fisicamente mas, simbolicamente, causa um estrago enorme, desde um inchaço na pele até a cegueira, quando o projétil infeliz alcança o globo ocular. E ainda vão me dizer: ora, não são todos os policiais que pensam assim; eles realmente desejam cumprir com a manutenção do Estado de direito, da ordem e assim por diante, e alguns mesmo chegam a ser simpático à causa da Revolta do Busão. Mas meu foco aqui, desde o início, não foi nem de longe esses indivíduos, favoráveis ou contrários. A força da polícia enquanto braço armado do Estado depende essencialmente de sua força enquanto instituição legal, não enquanto massa de indivíduos (ainda que ligados por objetivos comuns). Seu duplo aspecto – fundadora e mantenedora do direito – constitui não só um empecilho aos protestantes da Revolta do Busão; é um paradoxo delicado (há algum paradoxo que não o seja?) que constitui a própria instituição, mais do que simplesmente caracterizá-la. Daí a que a polícia saia tratando qualquer um como amigo ou inimigo (na definição schmittiana que expus acima, não nos esqueçamos), é só um passo.

(1) Carlos Eduardo prometeu, em duas semanas, encaminhar o processo de licitação à Câmara dos Vereadores. Vamos aguardar (e fiscalizar) o que acontece.