Parte da imprensa, a que se diz imparcial, já encontrou as palavras neutras necessárias para descrever o que ocorreu ontem – “estudantes e policiais entram em confronto”, ou, estudantes e policiais “se enfrentam”.
Dois grupos entraram em rota de colisão?
O desencadeamento da violência foi proporcional e equilibrado? Se sim, para reprimir quem? Ou o quê?
Como se deu a disputa: cadernos, batuques e faixas de um lado X bombas, gás e tiros de borracha do outro?
Ora, para além do relato que supostamente não toma partido, sob a desculpa de que está apenas descrevendo (como se a verdade viesse da mera contemplação platônica), é preciso firmar posição, mostrar a lente de análise. É fundamental dizer a partir de quais critérios – objetivamente – o observador julga acontecimentos, sem medo de expor seu ponto de vista e a vista que lhe possibilita um discernimento.
Sobre isso, Walter Bejamin, filósofo frankfurtiano que preferiu se suicidar a ser levado pelo exército de Hitler, disse algo bastante acertado: não há nada mais parcial do que a imparcialidade. E vendo os fatos na perspectiva de determinadas trincheiras, não há como titubear – falar em “confronto”, “enfrentamento mútuo” mais justifica terror policial do que elucida.
Afirmar também que “excessos foram cometidos de ambos os lados” desconsidera tudo o que está no centro e no entorno.
O que existiu na noite do dia 16 de maio foi a deliberada atuação de um Estado que jogou sua polícia contra a população, que brutalizou um protesto pacífico.
Até o revide com pedras e latas – ninguém é obrigado a apanhar inerte, ou é?! -, algo que se processou na primeira #RevoltadoBusão, não pode ser visto como prática sistêmica adotada na última passeata, a não ser em casos isolados. Mas enquanto o filósofo Thomas Hobbes, principal ideólogo do poder absoluto do rei e que afirmou o súdito como portador da possibilidade apenas de respirar, aceitava tal direito (no século XVI!); parte da mídia local criminaliza às minguadas tentativas de auto-defesa e as qualifica em patamar semelhante ao das bombas, tiros e gases.
O jornalismo apolítico também pratica a política de demonizar cinco ou dez estudantes (estava lá, assim como outros colunistas da Carta, e não vimos 1% dos manifestantes com o rosto escondido), que pegaram a camisa e se encapuzaram; e de esquecer intencionalmente o capuz dos policiais, ar-ma-dos, em frente ao midway.
Por que relacionar o capuz com banditismo, ao invés de trazer a luz do dia o fichamento, ditatorial, feito pela polícia civil daqueles que estão sendo investigados e perseguidos simplesmente por causa de suas presenças – às vezes, nem isso! – na #RevoltadoBusão de 2012?!
A mascara do estudante era para não ser fotografado pelos policiais infiltrados, como ocorreu ano passado. Não para cometer “vandalismo”.
E o capuz do policial era para quê? Ele enfrentava alguma máfia, que o juraria de morte depois? Corria perigo de imagem, de vida?
Se não, cabe perguntar: polícia que serve o cidadão anda de cara fechada?
A moralidade empregada é bem seletiva, de ocasião. Bate no pequeno e salva o grande. Arregaça com o estudante e alisa contra quem e o quê movimentos sociais estão lutando.
Alguns mais polidos apelaram para o juridiquês, lembrando da interferência do Seturn, que parece ter conseguido atingir o seu propósito. Entretanto, se um juiz federal, no conforto de sua poltrona, impediu, através de uma liminar relâmpago, que era proibido fechar a Br 101 e a polícia queria apenas “dispersar a multidão”, por que, então, cercar os estudantes, professores e trabalhadores de ambos os lados? Por que jogar bombas pela frente e, quando estava já ocorrendo o desmembramento do grupo, fazer campana do alto de uma passarela e atirar em quem recuava?
Se a meta era o retorno da normalidade, esta ordem (antidemocrática) foi viabilizada por métodos caros ao estado de exceção, não da lei.
O sofisma não convence.
O movimento auto-denominado, criativamente, de #RevoltadoBusão era escancaradamente pacífico. Foi uma das questões mais ressaltadas durante o chamamento nas redes sociais e durante a concentração dos manifestantes. O próprio dado foi levantado por alguns agentes de polícia entrevistados pela imprensa.
No entanto, para eufemizar a violência, torná-la natural, aceitável – mais do que já é. Vide a condescendência com o extermínio de pobres, negros e jovens nas periferias da região metropolitana de Natal -, salientaram: “apenas agimos contra alguns ‘elementos’, que se infiltraram no protesto”. Ora, isso não ocorreu (nas dezenas de vídeos que gravitam pela net sempre aparece à polícia batendo, prendendo, atirando, soltando bombas, apreendendo máquinas fotográficas e as pessoas, às vezes, adolescentes, correndo). Mas se tivesse acontecido, por que não agir dentro de determinados limites contra quem de direito? Por que atirar contra a multidão?
A operação foi clara e não tinha nada a ver com o combate dos irreais criminosos. A polícia quis passar o seu recado: não aceitaremos mais nenhum tipo de protesto.
No Carnatal, quando várias ruas são fechadas por quatro dias (não apenas por poucas horas) e por motivos, digamos, bem menos voltados para o bem comum (mas com farto patrocínio público do governo e com todo o aparato logístico da prefeitura), a polícia não age da mesma maneira. E a justiça, mesmo sendo provocada pelo Ministério Público, permite que Natal ainda seja a única capital do país que tolera uma empresa privatizar temporariamente a cidade em prol do seu lucro.
Injustiça seja contada. É desonesto debitar (creditar?) tanta violência apenas na conta da polícia. Ela age, sim, contra o cidadão e ainda sonha com o re-estabelecimento de um passado ditatorial não mais condizente com o nível de consciência política atingido. Porém enquanto alguns homens fardados batiam numa professora da UFRN de 60 anos de idade, conforme relato publicado pela própria em seu facebook e repercutido pela Carta Potiguar, gente incitava desavenças nas redes sociais e clamava por sangue.
No seu facebook, no seu twitter quantas e quantas vezes você leu frases do tipo: “spray de pimenta, bomba e bala de borracha é pouco”?!
Só que não adianta sonhar com o retorno a um passado de tranquilidade aparticipativa, que não volta mais. O silêncio almejado não combina com a liberdade de expressão das redes sociais, das ruas.
E por mais que se tente, não resolverá criminalizar lutas reivindicatórias. Os sindicatos, movimentos sociais, estudantes, simpatizantes, cidadãos (!) mostram que vieram para ficar e colocar em xeque o status quo, o modo de fazer política que aparta, não dialoga.
Novos atores entraram em cena. Nossa democracia pulsa. É quente, vibrante. O tempo do conformismo já passou. Estrebuchar? Não surtirá efeito. É irreversível.
PS. Imagens: Alex Regis.