A queima do Alcorão, na última terça-feira, 21, por soldados americanos no Afeganistão não apenas causou entre os afegãos revolta, como desencadeou no país uma série de manifestações e protestos acalorados e violentos. Certamente, podemos pensar, foi um ato de desrespeito e um ataque moral dos soldados americanos, cuja indignação e sentimento de infâmia gerados são ainda maiores por se tratar de tropas estrangeiras que ocupam o país.
Alguns anos atrás, por ocasião de uma midiática e interesseira campanha de promover o Dia Internacional da queima do Alcorão, capitaneada pelo pastor Terry Jones dos EUA, escrevi um texto cujos argumentos retomo por crê que eles ainda são válidos ao meu propósito.
Não é do desrespeito ou da intolerância norte-americanas que aqui quero abordar. Minha questão será de outra ordem. Não se trata, em última instância, de decidirmos se apoiamos ou rejeitamos tais atos e condutas em si mesmas; qualquer um com o mínimo de bom senso reprova a infantilidade e estupidez dos soldados americanos ou daquele pastor, que, gratuitamente, só fazem acirrar os ânimos e alimentar o ódio sobre um conflito bastante sério, e que vá além de uma guerrinha de isqueiro, papel, bandeiras, bíblias e Corão.
A questão que eu gostaria de colocar diz respeito às implicações da postura profanadora diante do sagrado que o episódio, para além das motivações e consciência dos participantes, levanta. Por suas implicações involuntárias, e, digamos filosóficas, sustento um direito à profanação. É sobre seu aspecto geral que gostaria de escrever.
Queimar livros são atos de barbárie, dirão. Um desperdício e atentado à cultura. Ainda mais, livros como Corão e a Bíblia, de reconhecido valor poético e literário. Mesmo sendo, digamos, agnóstico e anticlerical, me deleito com a beleza dos versos do livro de Jó ou Jeremias e, como um aluno, silencio diante da sabedoria dos ensinamentos e máximas presentes no Eclesiásticas de Salomão. Pois bem, não defendo a queima em si, nem a eliminação de tais livros. Afinal, as pessoas tem todo o direito de acreditarem em toda sorte de crenças que julgarem críveis ou necessárias em suas vidas. Porém, defendo a postura que subjaz na profanação das crenças, na iconoclastia e heresias.
Evidentemente, muitos se sentirão ofendidos e insultados, e os motivos e as razões dos piromaníacos cristãos ou islâmicos não são lá convincentes nem razoáveis, todavia, ainda que ética e politicamente condenável e estúpido do ponto de vista racional, penso que, ao contrário de algumas propostas, não há que se proibir a queima do Corão ou qualquer livro sagrado.
Em que fundamentar tal disparate, perguntaria o leitor? Na liberdade de expressão? Não, não é nessa premissa sagrada de nossas sociedades liberais que encontro minhas razões para tal ideia.
De um ponto de vista político-filosófico, por assim dizer, a profanação é fundamental. No ensaio “Elogio da Profanação”, Giorgio Agamben, filósofo e filólogo italiano, defende que na ideia e na prática da profanação, assim como da ironia e da paródia, radicam formas de crítica e de ação política que anulam o poder da norma, isto é, do vínculo intocável e improfanável entre coisas, regras e sentido em que tanto a noção de norma como de sagrado repousam e visa garantir. Embora o foco de Agamben seja os dispositivos de normalização da vida nas sociedades contemporâneas, abraço essa ideia da profanação como arma crítica que desativa a norma, e a dirijo contra à noção de sagrado e o poder da religião.
Por meio da profanação restituímos ao uso, ao arbítrio e à racionalidade dos homens o que antes, por engodo e arbitrariedade, pôs-se em separado, numa esfera religiosa e transcendente. A religião e o sagrado são, de uma maneira geral, prescritivas e restritivas, na medida em que afirmam que há coisas, temas e motivos que não cabem aos homens conhecer, discutir, nem intervir, pois eles referem-se a uma outra esfera, aparte da “esfera dos negócios humanos”, para utilizar a expressão de Hannah Arendt. Graças a essa operação de separação, criam-se os “monopólios dos bens de salvação”, as hierarquias entre os que mediam a relação com o sagrado e aqueles que não tem acesso direto a ele. Inventam-se mitos e levantam-se crenças e igrejas pelos quais se mata e se morre.
A noção de sagrado é um das ideias pelas quais se funda a desigualdade entre os homens e o poder de uns (sacerdotes) sobre outros (servos, crentes). Com efeito, a noção de “sagrado” não passa de um artifício cultural. Ela opera no seio das coisas divisões, assim como divide os homens entre representantes do sagrado e cultuadores do sagrado. É por meio dessa operação que funda relações assimétricas entre o mundo das coisas e dos homens que muitas religiões instalam-se como uma forma de dominação e acúmulo de poder . Parodiando a famosa frase do filósofo Rousseau no Discurso sobre a Origem da Desigualdade, eu diria que “o primeiro homem que veio com a ideia de dizer ‘isto é sagrado’ e encontrou gente simples o bastante para acreditar nele, foi o fundador da desigualdade e assimetria entre os homens: guerras, horror e dominação sobrevieram sobre os homens porque não houve ninguém para dizer ‘cale a boca, impostor!’. Da crença e da institucionalização do sagrado derivaram muitas das misérias humanas.
Portanto, a estupidez dos soldados americanos ou a tola extravagância do pastor norte-americano em propor a queima do Corão, ainda que nenhum nem outro saibam disto, suscitam uma atitude de profanação que, em seu simbolismo e efetividade, devolve à esfera humana o que antes estava sob a tirania da interdição, do medo e do silêncio. De sorte que, aquilo que se pretendia manter interditado e em separado retornar à terra e à discussão desmistificadora. Pois as sagradas folhas queimadas não trarão pestes e pragas vindas dos céus, lançadas sobre a terra por um Deus poderoso e irado. Mas sim, talvez, na pior das hipóteses, aviões pilotados por homens enfurecidos e embrutecidos por fábulas ou apenas marchas, cartas e abaixo-assinados. Consequências humanas, demasiadas humanas, e não divinas.
O ato de queimar livros sagrados questiona este tão enraizado sentimento de que há coisas as quais não se pode tocar, que existem coisas diante das quais se deve tirar os sapatos, curvar-se e tolher as mãos para não contaminá-las com nossa imperfeição e sujeira. A profanação não visa ridicularizar o sagrado ou, como intentam o ignorante pregador ou os soldados americanos, ofendê-lo. É está mais além e aquém do bem e do mal. Profanar é um gesto libertador.
A ideia da profanação consiste em exatamente discutir e avaliar ao invés, como faz a religião a partir da noção de sagrado, interditar, velar, resguardar e preservar do entendimento e da ação humana certas coisas e temas. Profanar significa retirar as auréolas e o véu da ilusão para submeter, ou melhor, restituir o que se quer e se pensa como eterno, puro e perfeito à falibilidade e à precariedade humana, que selam tudo quanto existe na esfera dos mortais.