Não se pode falar em ideologia apenas como um sistema de idéias. A filosofia e a sociologia pós-wittgensteiriana (wittgenstein – filósofo austriáco) mostraram como uma “visão de mundo” se automatiza enquanto prática in-corpo-rada, como um julgamento que se naturaliza. Ultimamente – algo que sempre vai e volta como o mito do eterno retorno -, setores da sociedade norte-riograndense vêm defendendo arduamente a ideologia do “bandido bom, bandido morto” como suposto meio de combate a violência. A cada ato espassado de criminalidade, sobretudo aquela que ataca a classe média tradicional e está georreferenciada nos limites dos Bairros de Ponta Negra a Petrópolis, uma comoção se instala e reivindicações de vigança tomam conta da nada modesta “cidade do sol”.
É possível encontrar em jornais, blogs, redes sociais e nas conversas informais em cafés e até livrarias – ainda bem que livro não tem ouvido – um pedido raivoso e eufemista para que a polícia “endureça”. Em outros, sem o menor pudor, o sujeito fala: “tem é que matar tudinho”, ou, dando ar de analista político ao pensamento fascista, “corpo de assaltante estirado cravado de bala é um boa propaganda de governo”. Se auto-entitulando cidadão “de bem” (desconfio toda vez que escuto alguém mobilizar tal termo), os ditos cujos alegam que a violência precisa ser “varrida” (higienizada?) da cidade. No final, jogada para debaixo do tapete – ela pode até ocorrer, mas desde que não seja por perto.
Não é o propósito do opúsculo dissertar sobre o quanto tal perspectiva desesperada, reativa é míope e atenta contra os direitos humanos. A ideia é lançar uma hipótese, que é a seguinte: a ideologia do “bandido bom, bandido morto” contribui para que o Estado feche os olhos em relação ao que está acontecendo hoje em Natal e sua região metropolitana – uma gerra civil quase institucionalizada, atuação de grupos de extermínio, aparecimento de justiceiros, etc (não nos esqueçamos de Mossoró e a sua escalada de homicídios). E gera também outras consequências.
Assassinatos, briga entre gangues, violência policial fazem parte do dia-a-dia da periferia (daí, talvez, advenha a forte audiência do programa da Tv Ponta Negra, filiada local do SBT, o denominado “patrulha policial”. Não da suposta “ignorância” dos seus telespectadores, como argumenta o senso comum douto). Em conversa com moradores da região oeste de Natal e de sua região metropolitana, aonde resido ultimamente, impressiona o fato deles citarem com muita naturalidade o nome dos agentes do Estado, que participam, segundo eles, de grupos de extermínio. Pululam relatos de traficantes, assaltantes ou simples usuários de drogas que foram aniquilados por pessoas encapuzadas ou mesmo por membros, bastante temidos, da polícia.
A ideologia do”bandido bom, bandido morto” cobra um tipo de efetividade do policial, que vai desaguar na forma extremada com que o último interage com, por exemplo, “maconheiros e noiados”. Como me disse um praticante de futebol usuário de maconha, uma coisa é levar um “baculejo” (abordagem policial) num espaço frequentado e aberto, outra é num terreno mais afastado. Soco na nuca, tapa na cara e chute nos testículos fazem parte do procedimento. “E não adianta nem abrir a boca, que você termina de se fuder de vez”, me contou.
Outro dia, um morador de uma rua próxima à minha a quem chamam de “irmão”, por ser evangélico, narrou, com indignação, o espancamento empreendido por um policial militar numa adolescente, que estava fumando maconha. “Ele dava de mão fechada”, esbravejava. Ao perguntar ao “defensor da lei” o que a menina havia feito, na busca (vã) de encontrar uma resposta justificadora para o absurdo, conforme o “irmão”, o policial respondeu: “saia daqui porque se não vai sobrar para você também”. Contou que descobriu depois que a garota reclamou do”baculejo” e tinha chamado o policial de “nojento”.
Do ponto de vista jurídico, é inquestionável num caso como esse quem é a vítima e quem é o culpado. Mas é possível destacar outras nuances sociais para não cair, dependendo da concepção, na simplificadora separação e luta entre quem representa o bem ou o mal. Ora, se por um lado, o policial é “chamado” a agir como um protetor da “ordem”, inclusive, quando não está “de serviço” (apesar do alto número de assaltos e arrombamento de casas, a Cophab em Nova Parnamirim é descrita pelos seus habitantes como um bairro seguro “porque mora muito policial, que não ‘alisa ninguém’ “). Por outro, o cidadão abordado, a família várias vezes vítima por encontrar entre os seus membros um assaltante, um traficante, um usuário de drogas se enxergam como aquilo que Agambem conceituou de “homo sacer”, ou seja, como um ser portador de um corpo, mas não de uma cidadania no sentido político pleno do termo.
A “ideologia do “bandido bom, bandido morto” ajuda a naturalizar a suspensão do Estado Democrático de Direito e institucionaliza o revanchismo, ódio e ressentimento, fortes combustíveis contra a vida de todos os envolvidos – o “bandido”, o “cidadão de bem” e o “mocinho” (o discurso mobilizado pela vítima de violência policial carrega uma forte carga de desconfiança – “tenho mais medo da polícia do que do ladrão” – e de satisfação – acontecimentos em que um policial fulano “encontrou um cabra de peia” são narrados com uma certa alegria no olhar. Não duvido que a vontade de matar um policial tenha alguma proximidade com o ressentimento que se produz nessa disputa construída institucionalmente).
Em suma, a ideologia do “bandido bom, bandido morto” aguça ainda mais a criminalização da pobreza, do comportamento tido como sinalizador de desvio e que deve ser combatido (um policial me disse: um coisa é encontrar alguém com droga, mas “respeitador, que a gente vê que tem família”. Outra é pegar aquele “maconheiro”, que fala feito “pinta” [cita palavras: “mermão”, “comédia”, “os homi”] e anda assim [ele gesticula um jeito de caminhar com fortes mexidas nos braços]). Faz o Estado, que não se planeja e não articula medidas satisfatórias de proteção social, oferecer respostas sistemáticas de ataque às periferias e aos direitos constituídos das pessoas como ação de governo. O resultado é o aumento da taxa de homicídio em quase 1000% nos últimos dez anos. Uma estatística, como diz Thadeu Brandão, sociólogo e professor da UFERSA, que mata negros, pobres e jovens.