A ideia de “Constitucionalização Simbólica” tem como um de seus precursores o professor Marcelo Neves, que desde agosto de 2011 integra o quadro docente do curso de Direito da Universidade de Brasília. Foi apresentada em trabalho realizado no ano de 1992 para fins de obtenção do cargo de Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco.
Com o escopo de abordar o significado social e político dos textos constitucionais, o autor faz referência à discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais, buscando, sobretudo, analisar os efeitos sociais da legislação constitucional, a que reputa normativamente ineficaz.
A legislação simbólica, segundo o autor, “aponta para o predomínio, ou mesmo hipertrofia, no que se refere ao sistema jurídico, da função simbólica da atividade legiferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento da função jurídico-instrumento”.
Expõe, então, a tipologia da legislação simbólica em três diferentes e resumidas matizes: a confirmação de valores sociais, a demonstração da capacidade de ação do Estado e o adiamento de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.
O fundamento base da tese do Prof. Marcelo Neves pode ser utilizado nas mais diversas arenas que envolvem temas de grande relevância em permanente pauta na sociedade, a exemplo da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela reforma agrária e da militância dos grupos LGBT pela extensão da cidadania a este segmento.
Afinal, uma das conclusões do autor é a de que a hipertrofia da função político-simbólica em detrimento da eficácia normativo-jurídica da constituição (simbólica) em países periféricos “proporciona o surgimento de movimentos e organizações sociais envolvidos criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional e, portanto, integrados na luta política pela ampliação da cidadania”.
O que nos interessa aqui, entretanto, é como a redução da maioridade penal, tema de vez, se insere nesse contexto de legislação simbólica, infrutífera e desconexa com a premente necessidade de transformação social que a população, em regra, deposita nas leis e nos seus eleitos representantes que as produzem.
Toda a miríade de dados, estatísticas, informações e experiências históricas – todos de vasto conteúdo, razão pela qual não convem enumerar – levam a uma conclusão batida e, ao que parece, distante de ser assimilada pela maioria: reduzir a maioridade penal não vai, em absoluto, resolver e tampouco mitigar o problema da violência urbana, principalmente no que diz respeito às crianças e adolescentes que, muitas vezes em decorrência do seu estado de vulnerabilidade, se encontram em conflito com a lei.
Mas, se não irá resolver, qual a razão de Geraldo Alckmin, governador do Estado de São Paulo, com base em um isolado caso de um adolescente homicida, engrossar, junto a um denso coletivo de parlamentares, as trincheiras dos que defendem com fervoroso ardor a redução da maioridade penal para 16 anos de idade?
Primeiro, a restauração das discussões sobre o tema se funda em fenômeno quase que sazonal e sedimentado em exceções. Os debates aflorados pela recente morte do estudante Victor Hugo Deppman pelas mãos de um adolescente de 17 anos são os mesmos revividos em 2007 por ocasião do trágico falecimento do garoto João Hélio Fernandes que, preso ao cinto de segurança, foi arrastado por sete quilômetros enquanto três rapazes – um deles com 16 anos – partiam em fuga com o carro da sua mãe.
Ora, só o fato do debate acerca da maioridade vir à tona tão somente quando casos excepcionais como estes acontecem – desde que, naturalmente, não envolvam a morte de esfarrapados cujas vidas valem menos que a bala que os mata – mostra a evidente passionalidade dos que defendem com furor vulcânico a redução da maioridade penal, inspirados muito mais pelo calor e emoção dos acontecimentos recentes do que pela razão e temperança alheias à irracionalidade materializada na insistência em transformar a exceção em regra.
Um dos pontos em que se manifesta a legislação simbólica, como já afirmado, é por meio da legislação-álibi, buscando dar uma aparente solução para problemas da sociedade através de uma efetiva distorção da realidade e, consequentemente, das mais eficientes maneiras de lidar com o problema posto.
Aponta Neves que a legislação-álibi se destina a “criar a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas de maneira consequente conforme o respectivo texto legal. Nesse sentido, pode-se afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando função ideológica”.
A legislação-álibi, assim, consegue inserir um sentimento de bem-estar na sociedade, solucionando tensões e servindo à “lealdade das massas”, embora, do ponto de vista prático, nenhuma solução traga.
Com a hipotética redução da maioridade penal, seguirá intocável o desrespeito dos entes públicos à prioridade absoluta e à proteção integral que a Constituição Federal traz enquanto princípios que devem servir de arcabouço ao tratamento do Estado, da família e da sociedade para com nossas crianças e adolescentes; serviços públicos essenciais, como saúde, educação, lazer e moradia permanecerão reféns de uma lógica nefasta de gradual precarização que acaba por alijar jovens carentes das mesmas oportunidades dispostas aos filhos e filhas das classes dirigentes.
Investir, todavia, em aspectos preventivos traduzidos na melhoria da prestação de serviços básicos cujos resultados na diminuição da criminalidade infanto-juvenil só virão a médio e longo prazo jamais saciará a imediatista lascívia por sangue e vingança dos setores mais abastados da sociedade que se compadecem com a morte dos seus, mas viram as costas para as cotidianas chacinas de jovens negros e pobres promovidas nos rincões periféricos de grandes centros urbanos.
Se os arautos da redução da maioridade penal acreditam, até de forma inocente, que o recrudescimento da legislação irá por uma solução nos conflitos sociais, é por que talvez não façam ideia do fosso higienizador que será aprofundado uma vez implementada tal medida – ou talvez até façam, sendo exatamente esse o seu real objetivo, não declarado por força do politicamente correto e do conforto em se ocultar sob o manto de uma inócua e frágil legislação permeada por um simbolismo vil e excludente que representa a última pá de cal no sistema de proteção social do País.