Por Clayton Marinho
Uma das grandes virtudes do ser humano é transformar vivências dolorosas em oportunidades de aprendizagem. Mas como falar isso a respeito dos ônibus, aqueles meios de transporte públicos que assombram cada um que deles dependem. O horror, quase fisiológico, necessariamente psicológico e, agora filosófico, ao qual se pode impor gera uma série de questões que incomodam. Não em sentido social, a sensação do fracasso por depender desse meio para trabalhar e estudar, mas de algo mais profundo, ontológico: a percepção de como esse meio mina a subjetividade de cada um, impõe uma guerra que se esquece da alteridade e, a perda da capacidade de convivência, notada no enfraquecimento e desvio do olhar. Cada um será tratado separadamente.
A ética estuda, necessariamente, a forma como o ser humano convive e se relaciona no seu enxerto (uma construção artificial, ou seja, não natural, própria do homem, conforme Jean-François Mattéi, em “A barbárie interior: Ensaios sobre o i-mundo moderno”), denominado “sociedade”. A alteridade é uma das chaves para se construir a possibilidade da ética. Quando essa possibilidade não existe ou é esquecida, não há possibilidade do Ser se colocar no lugar do Outro e perceber esse Outro como Ser, ou seja, a consciência de que o Outro é dotado de consciência sobre si e sobre os demais, inclusive nesse Ser como Outro do Outro.
A subjetividade sofre nessa situação, pois sem uma identificação do Ser com o Outro (e vice-versa), temos uma verdadeira guerra que se trava, já que o Outro sempre será o diferente, o estranho em relação ao Eu (que se esqueceu social). Cada contato da carne, do sujeito com o Outro gera um desconforto, a sensação de violação não consentida. Aquela subjetividade estranha interfere e aniquila a subjetividade, por permitir-se (sem permissão) a intervenção no corpo, pelo contato.
Os corpos entram em estado de atrito ontológico, acabando-se por fundir-se mutuamente, numa massa uniforme de subjetividades extraviadas pela multidão. Além de não ser permitido manter a integridade da subjetividade, pela invasão (espacial) daquilo que não se tolera em tantas outras circunstâncias, é-se forçado a integrar a multidão, não reconhecendo alguma participação social, surgida através da alteridade. Há um verdadeiro insulto! A convivência torna-se intolerável. Intolerável pela deterioração daquilo que se é, ideologicamente, mesmo que em níveis diferentes, levados a crer ser o essencial da existência: a individualidade. Essa questão leva ao último ponto: o enfraquecimento do olhar.
Apesar da posição benjaminiana nessa questão, percebe-se que a individualidade (e depois o narcisismo nos termos de Gilles Lipovetsky) condiciona o ser humano a enxergar-se como a única razão de sua existência. Contudo, na situação pós-moderna, sem a fé de que isso significaria salvação (quando se trata de uma perdição ou de um inferno sem fim), o ser humano não é mais capaz de recuperar tal capacidade. Além de um traço de falta de esperança (pela anelação constante, ou seja, ligação que engendra novas ramificação em um rede rizomática, igual à internet por exemplo), a pessoa não consegue, nem deseja, retribuir o olhar, recuperar rastros de histórias humanas, para se constituir como sujeito integrado à alteridade.
O desvio do olhar, a recusa de não reconhecer o Outro e participar de sua história (mesmo que no silêncio ou no pedido pelos objetos) mostra que esse indivíduo tornou-se incapaz de se perceber como integrante de uma sociedade, de uma comunidade, como alguém que participa, e principalmente, sente-se integrado nesse meio. Mais que isso, mesmo na forçosa situação do ônibus, ainda é incapaz de negar sua convivência.
A questão da Aura em Walter Benjamin parece reverter-se aqui em valor negativo: Uma distância na proximidade. A distância do olhar para negar a presença do corpo na convivência do ônibus. Uma fuga em meio a algo insustentável. É importante ter em mente que o ônibus se configura como um não-lugar, um lugar de passagem. Pela sua configuração, as pessoas, apesar do uso diário, do dispêndio da própria vida, não se identificam com o espaço, porque, em natureza é um não-lugar (sem história, sem ligação e recusa de pertencimento). Aliado a essa questão, os pontos que foram abordados, geram um verdadeiro e profundo mal estar. É horrível e degradante. Não só pela sensação de fracasso, mas muito mais pela percepção da degradação do próprio sujeito e de qualquer coisa, que possa significar convivência e (re)conhecimento do Outro e de si mesmo, para a construção de experiências que modifiquem e melhorem o mundo.
É perceptível que essa estratégia de degradação tem uma função social: fazer com que surja o desejo de obter um carro, o símbolo da vitória contra o fracasso e da liberdade frente à própria comunidade. Assim, em vez de um apoio à alteridade como possibilidade de recuperação da dignidade humana, há uma constante deterioração desse laço que poderia salvar o homem, não somente o indivíduo.