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Quando um mudo canta para os surdos ouvirem

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Por Clayton Rodrigo da Fonseca

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte da UFOP

vazioHouve um tempo em que passava na tv uma propaganda da TV Cultura sobre o conhecimento, como algo que ultrapassa qualquer fronteira, pela necessidade, simples, de conhecer e vencer a si mesma. Claro que ela está se posicionando claramente frente às demais como um local em que o conhecimento é o motor. Paradoxalmente, sutilmente mostra que as demais não executam esse papel. Não por uma acusação aberta ou mesmo dissimulada, mas pela afirmação do que a Cultura é, em oposição ao que não é, que se prestaria às demais. Contudo, mesmo com todo o caráter pedagógico e valorativo do Conhecimento e de sua busca, a propaganda parece-me mais uma ameaça do que algo bendito. Não há nada que não seja passível de ser devorado, ou jogado no abismo da vontade do conhecimento. Nada que não seja consumível pelo Conhecimento.

Todavia, na maioria dos casos, essa fome do Conhecimento pelo conhecer, que é infinito e irrealizável – como diria Lukács em seus textos “A relação sujeito-objeto”, na medida em que a verdade é a “totalidade dos infinitos objetos”, não havendo, portanto, sujeito que consiga apreendê-la inteiramente –, serve como modo de viver no mundo. Essa vivência se dá pela apreensão do que o mundo possui, de seus objetos. Walter Benjamin escreveu em seu “Origem do drama trágico alemão” que a verdade deve ser trazida aos poucos, e que esse fragmentos devem ser reconstruído como mosaico. Assim, o objeto precisa ser explodido para ser esclarecido e, depois juntado como uma constelação em uma nova modelação que sirva ao conhecimento, o que proporcionará novos entendimentos, novos conceitos, no intuito de recuperar o tempo do agora, um tempo de atualização, que implica em significar a luz do agora o passado e enxergar caminhos pelo que a história poderia ter sido.

A educação se apresenta como um cadáver, de modo que resta-nos perguntar: o que poderia ter sido desse corpo, se não fosse como foi? Apesar de escrever de certa forma hermética, reconhece-se, é importante fazê-lo com vias a proporcionar a dúvida aos leitores. É através da dúvida que cria o hábito de procurar respostas, de buscar conhecer. A propaganda comentada lá no início! Como cadáver, no entanto, a educação fez esmorecer, para usar um eufemismo, a vontade pelo que não se conhece, da potência de ser aquilo que se pode ser.

Acostumou-se ao fácil, memorizável e repetível incessantemente. Uma mecânica que mais transforma o ser humano em mera máquina que ser vivente. O estudante não morreu pela putrefação da educação, mas tornou-se deficiente. Um tipo específico de deficiente. Gilles Lipovetsky, em seu livro “A Era do Vazio” introduz esse tipo: o zumbi. O zumbi é um indivíduo que só vive na presentificação (sem noção de passado ou futuro), na consumação de seus instintos primitivos, o Id de Freud, individualista e que só vive “socialmente” em uma massa uniforme, que é a multidão: não é possível reconhecer nenhuma singularidade, somente a massa que é assustadora e esmagadora, mas sem ligações afetivas de fato. Esse indivíduo que vive em nossa sociedade (por que The Walking Dead faz imenso sucesso hoje?) é cego e surdo. Benjamin, mais uma vez, constatou que o homem perdeu a capacidade de olhar. Ao perder essa capacidade, também tornou-se incapaz de deixar rastros de que viveu, para que os demais pudessem seguir. Perdeu, contemporaneamente, a capacidade de ouvir, graças não só aos fones de ouvidos, mas também ao desinteresse em dar atenção ao clamor do Outro. Por que seria diferente em perder a capacidade de falar? Ou melhor, por que fazer música hoje se não se escuta?

Assim, é possível deparar-se com uma “pérola” da cultura, o clipe de uma banda de nome pejorativo – porém usual –, o “Forró da Putaria” (praticamente um pleonasmo) e sua “música” intitulada “O Mello do Mudim”. Mesmo sem querer, eles instauraram um novo patamar na música – não somente no forró, mas na música popular que caminha na mesma esteira do “Sertanejo Universitário”, do “Funk”, do “Axé” e tantos outros. De um enriquecimento que a língua proporciona com as conotações, com o “como se” – que marca uma revolução, tendo um expoente como Baudelaire, agora, tudo se reduziu às interjeições, sílabas, aqueles atávicos sons inaudíveis que desaguam no mudo que canta, na ausência de linguagem comunicável.  Naturalmente, as canções dessa linha ao qual se propõe a banda, já se realizam na ausência de melodia e com uma pobreza de ritmo e de letra. A palavra tornou-se tão banal nesse tipo de música, que é descartável – a banda foi “sagaz” em livrar-se de acessórios; o exprimível parece pender para um inexprimível primitivo, digno das cavernas. A letra é uma finalidade sem fim para justificar o restante, remendar o ritmo e promover a festa monstruosa da derrocada do forró e dos outros estilos.

Obviamente, que existe a intenção clara de chamar a atenção do público, pelo grotesco: colocar um mudo (ou, politicamente correto, uma pessoa com deficiência) para cantar, desejando tornar a ridicularização, ato de possível sucesso. Mas, mais do que isso, um cantor mudo é na verdade, a perfeita alegoria do tipo de forró nordestino atualmente – considerando-se aquelas que estão mais destacadas na mídia, não se esquecendo disso, e que reúne multidões. Alegoria que também atinge o público. Um mudo só é eficaz como cantor, na medida em que uma multidão de surdos o escutam. Na medida em que o som é dispensável, o necessário é somente encenar, fingir e iludir (Spiel em alemão que significa tanto ilusão como jogo): numa sociedade de aparências, parecer-ser é mais essencial do que ser – este se torna a superficialidade nesse novo esquema social. Tem-se aqui uma obra do absurdo! Há muito esquecido de ver, de olhar. Agora, a audição é abandonada. Logo, por não escutar ninguém nem nada, falar será cada vez mais difícil e as palavras serão perdidas, tornando-as apenas balbucios indistinguíveis. Será que, a posteriori, seria capaz de entender a origem da linguagem, quando se retroceder? Na verdade, não importa, já não haverá palavras para “ada danaga, ada na na gua”…