Um Diálogo intersetorial ou uma impossibilidade jurídica?
Por Clara Késia Cândido¹
Para tratar de Medida de Segurança e Reforma Psiquiátrica é necessário estabelecer alguns conceitos do que trata cada um deles.
A Medida de Segurança, como nos ensina a melhor doutrina Penal, é a medida destinada à pessoa que comete crimes, mas não entende a ilicitude da sua conduta, não podendo assim ser punida, sendo chamada pelo artigo 26 do Código Penal de inimputável. Enquanto Reforma Psiquiátrica – embora seja um conceito intersetorial, muito complexo para ser definido em poucas palavras – a grosso modo, é o movimento que trata da extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por uma rede de apoio aos pacientes psiquiátricos, inclusive para os já institucionalizados.
A partir desses pressupostos, questionamos: Estariam os “criminosos” em cumprimento de Medida de Segurança abarcados pelos benefícios da Reforma Manicomial, por terem cometido crimes, ou seriam um caso à parte dos pacientes psiquiátricos comuns?
A Lei que trata do tema, precedida de vasta discussão e de luta do movimento antimanicomial, a 10.216/01, traz em seu artigo 1º a afirmação de que não pode haver discriminação entre as pessoas acometidas de doença mental, por quaisquer motivos que sejam, logo, seguindo esta linha de raciocínio, não há exceção a nenhuma classe de portadores de sofrimento mental, os indivíduos em cumprimento de Medida de Segurança, por tal benesse estariam abrangidos, porém não é isto que tem acontecido.
Em recente monografia falamos acerca disso, e durante a pesquisa podemos constatar, em análise de alguns casos, que as reiteradas decisões judiciais não levam em conta que não deve haver diferença entre os pacientes psiquiátricos comuns e portadores de sofrimento mental que cometeram crimes.
Por observar a ausência de uniformidade nas decisões o CNJ se pronunciou na resolução nº 35, recomendando que na execução da Medida de Segurança os julgados (…) “adotem a política antimanicomial, sempre que possível, em meio aberto”, e ainda que haja (…) “promoção da reinserção social das pessoas que estiverem sob tratamento em hospital de custódia”, ressaltando mais uma vez, que o movimento contra o ambiente asilar se refere também aos pacientes já em tratamento.
Manicômio Judiciário, em sua essência tem uma natureza ambígua, é um misto de prisão e hospital, conforme nos ensina Carrara (1998, p. 193), não há nele a ideia de punição, por nem todos os seus usuários terem plena consciência do motivo que os levou a estar segregados de suas vidas – exceto por “flashes” de lucidez, obviamente dependendo de suas patologias – tampouco se pode falar de tratamento efetivo, apenas de contenção química, com uso abundante de psicotrópicos e menos ainda se podendo falar em terapias alternativas. Por isso, deve ser ele o alvo de políticas públicas para que a institucionalização seja menos gravosa.
Ressaltamos aqui o lúcido posicionamento do Procurador Paulo Jacobina, quando trata dos Manicômios Judiciários e das Medidas de Segurança, para ele da maneira como está posta “pune a loucura, sob o fundamento nem sempre explícito de a desmascarar, arrancá-la do ser humano. E que, se de resto acaba restringindo a liberdade do portador da doença, por via de um internamento que, se no discurso é não punitivo, na prática lhe arranca a liberdade e a voz”, afirma ainda que não se pode conceber um Estado Democrático de Direito, que tenha por fundamento a Dignidade da Pessoa Humana que permita que se aprisione pessoas que sequer possuem o entendimento do porquê estão sendo punidas, sendo assim podemos conceber a Reforma Psiquiátrica como a forma de devolução da cidadania do louco e a mais explícita manifestação da aplicação do princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Por fim é muito interessante observar, que o questionamento ao saber psiquiátrico como forma absoluta, não é recente como a data da legislação no País, ele já estava presente na geração de Machado de Assis, cujo livro “O Alienista”, traz uma fiel cópia do molde autoritário que a Psiquiatria assumiu, nesse clássico conto, publicado na forma de folhetim em 1881 e 1882 – que de certa forma traz condensadas as críticas trazidas por autores como Erving Goffman, Focault e Basaglia, embora nem todos estes fossem contemporâneos a Machado – traz em si suas dúvidas sobre o poder da psiquiatria de determinar onde e quando se manifestava a razão.
CONSULTOR ESPECIAL DO ARTIGO:
Carlos Jose Seabra de Melo, Belº em Direito, Especialista em Direito Administrativo, Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.
REFERÊNCIAS:
ASSIS, Machado de, 1839-1908. O Alienista. – São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.
BRASIL. lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. 06/04/2001. Disponível em < www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm > . Acesso em: 03. set. 2012.
CARRARA, Sérgio. Crime e Loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: EdUERJ; São Paulo: EdUSP, 1998
JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Saúde Mental e Direito: Um diálogo entre a reforma psiquiátrica e o sistema penal. 2003. 99 p.
IMAGENS DO ARTIGO
FRAINO, Aramis. Cowboy Android e Inside of the Rainbow disponíveis na galeria virtual do artista em < http://migre.me/dP3h7 >
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¹Clara Késia Cândido de Medeiros é acadêmica do 9º período do curso de Direito da Faculdade Estácio de Natal. Link do facebook < https://www.facebook.com/clarakesia.candido >