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Enem, privilégios e o racismo da inteligência

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Impressiona o modo como a velha classe média tenta se legitimar, se apresentando, dentre outros meios, como a única portadora de conhecimento letrado justificador do acesso desigual que ainda tem às vagas universitárias, melhores cargos da administração pública, aos próprios direitos constitutivos da dignidade humana. Incomodada pela diminuição da desigualdade na obtenção de um diploma de graduação, utiliza agora o Exame Nacional do Ensino Médio como a política educacional geradora de todos os nossos problemas. A disparidade encontrada entre a qualidade da redação de alguns alunos e as notas atribuídas pelos avaliadores se transformou na mais nova trincheira contra o Exame.

De fato, os erros de português contidos nas provas e os seus respectivos resultados chamam atenção e é preciso que o Ministério da Educação averigue e apresente resposta substantiva sobre o que vem ocorrendo.

Porém, não é possível fazer uso de um revés específico, para deslegitimar toda uma medida que acabou com a indústria do vestibular e vem democratizando – na medida em que melhor distribui – a possibilidade de ingressar no ensino superior federal no Brasil. Na verdade, a ampliação do acesso às universidades públicas era louvada, apenas, quando dizia respeito ao ingresso nos cursos menos procurados, presitigiados. A reação aumentou quando políticas de cotas para negros e pobres e o ENEM começaram a avançar sobre as tradicionais carreiras da classe média – Medicina, Direito, Engenharias, etc.

Vale não esquecer a revolta dos cursinhos preparatórios de Natal em relação a um aluno pobre que, pelo argumento de inclusão, “tomou uma vaga de uma pessoa mais preparada para a medicina”, conforme falou um entrevistado a uma emissora de Tv local na época. De acordo com dados recentes publicados pela imprensa, de modo um tanto quanto tímido e tema da coluna do jornalista Elio Gaspari, os “cotistas” desenvolvem semelhante desempenho se comparado aos outros discentes não cotistas. Não raro, o primeiro supera o último nos últimos semestres do curso de graduação. Tese, portanto, que não passa de puro senso comum.

A consagração da língua culta é algo que deve perpassar o ensino no Brasil. Quem pode ser contra isso? No entanto, não deve servir de subterfúgio para impedir que os cidadãos exerçam direitos em sua plenitude – inclusive, o de entrar numa universidade –, como se o ato de raciocinar fosse sinônimo de bem utilizar a ortografia. O respeito às normas do português não permite racismos da inteligência, no sentido de invalidar práticas, outros modos de ser e de fazer.

Mas não é a simples preocupação com a gramática que norteia a ofensiva reativa. Há um agrupamento que se acostumou a relacionar diploma de graduação como justificativa para praticar a sua supercidadania e impor uma subcidadania para os demais. E o ENEM, no fim das contas, quebra uma lógica de imposição de uma hierarquia social no Brasil, que só privilegiava a velha classe média e que obrigava os pobres a aceitar os baixos salários de empregada doméstica, serviços de jardinagem, enfim, a acrítica classificação:

  • Trabalho intelectual, portador de diploma = inteligência, direito de dizer como a sociedade deve caminhar (políticas públicas, acesso aos recursos);
  • Trabalho manual feito por quem “não quis estudar” (quantas vezes você não ouviu esta frase, inclusive, vinda de quem é vítima dela?) = baixos salários e suposta incapacidade de falar sobre si mesmo, escolher seus caminhos, construir e defender um projeto, etc.

Ou:

  • Uso correto da ortografia = plenitude, autenticidade, vida autônoma;
  • Uso considerado inadequado = heteronomia, massa de manobra, não sabe votar, vida tutelada.

A velha classe média não é boba e não vai aceitar nada que diminua o fosso entre ela e aqueles que estão lutando por uma aproximação, não vai admitir perder aquilo que justifica a sua superioridade.