Há 130 anos morria o homem Karl Heinrich Marx (1818-1883). Mas o pensador revolucionário e sua obra persistiram ao perecimento do corpo e à “crítica roedora dos ratos”. Nem a morte, o tempo, as ideologias contrárias, a ausência de títulos universitários, os partidos burocratizados e ditadores e as experiências autoritárias do socialismo real foram capazes de enterrar Marx e o seu legado filosófico e político. Ao lado de seu amigo e interlocutor intelectual Friedrich Engels, Karl Marx foi um acontecimento no pensamento e na história da humanidade em geral e do ocidente em particular.
Junto ao seu nome, os mais diversos e antagônicos sentimentos e ideais se reuniram; admiração, idolatria, ressentimento, ódio, igualdade, liberdade, justiça, opressão, autoritarismo, dogmatismo. Se Marx, com a devida justiça, foi admirado e reconhecido pelos seus feitos intelectuais e por seu papel moral por grandes intelectuais e personalidades do século XIX e XX, foi, também, por outro lado, idolatrado e difamado com a mesma ênfase por outros tantos grandes intelectuais e personalidades do período. Seu pensamento e obra nunca foram unanimidade.
Ainda que não tenha sido o autor que cunhou o nome capitalismo, Karl Marx foi o pensador que produziu a mais fantástica síntese explicativa deste aglomerado de práticas econômicas, relações sociais, tecnologias, lógicas produtivas a que hoje chamamos de uma maneira tão simples e natural de “sistema capitalista”. Um esforço e um talento extraordinário foram necessários para conceber e reunir, numa totalidade conceitual, as conexões de sentidos e as relações lógicas entre elementos da realidade e da história que até Marx não eram de modo algum evidentes e inteligíveis. A clareza que temos atualmente das principais estruturas e da dinâmica do capitalismo a devemos à lucidez e ao talento do autor de O Capital.
Como somente os grandes espíritos são capazes, Karl Marx trouxe à superfície o sentido último de uma época, que, para o filósofo e economista, poderia ser traduzido na ideia de contradição que parecia impregnar todas as conquistas, progressos e invenções das quais se orgulhavam a cultura moderna e a burguesia. Cada uma delas trazia o seu contrário e corolário para a dominação, alienação e apequenamento do homem pelo homem e pelas coisas.
O filósofo alemão de origem judia, munido do método dialético, da noção de luta de classes e de sua teoria da alienação, do fetichismo e da exploração, revelou alguns dos principais fundamentos das sociedades industriais do século XVIII e XIX. Desvendou seus segredos e opacidades estruturantes. Em sua pena, a natureza da produção de riquezas, a natureza da divisão da sociedade capitalista, a natureza da relação do trabalhador com o seu trabalho, a natureza mistificada da realidade burguesa e a natureza do movimento da história vieram à luz de um modo novo e desconcertante.
Com rigor e sem piedade, Marx pôs à nu as mais duras realidades do capitalismo do século XIX. Mas, nem por isso, perdeu a sensibilidade. As referências e os estudos mais áridos de Aristóteles, dos economistas clássicos e de Hegel não o fizeram deixar de lado desbravadores da alma humana como Shakespeare, Goethe e Balzac, aos quais por várias vezes ele recorreu para dar vida, imagem e compreensão aos raciocínios que elaborava sobre a forma de vida e das relações sociais capitalistas.
A capacidade de Marx em desvendar realidades opacas servia não apenas à interpretação do mundo pelos filósofos e outros sábios, mas também à transformação do mundo pela classe trabalhadora. A interpretação do mundo que nos brindou Marx só fazia sentido para o pensador enquanto não se perdesse do horizonte a transformação deste mesmo mundo que ele tanto contribuiu para esclarecer.
É bem verdade que ao redor do seu nome, formaram-se estruturas burocráticas, doutrinas e seguidores a fazer inveja a qualquer grande líder religioso e político mundial. E que a interpretação “verdadeira” de seus textos e conceitos foi, e ainda é, alvo de disputas tão acirradas quanto de qualquer outra ortodoxia. Tudo isso oblitera, distorce e obscurece o pensamento de Marx, assim como, também, dificulta uma avaliação ponderada e justa acerca de sua contribuição, atualidade e limites. Porém, Marx e o marxismo resistem à ortodoxia e ao dogmatismo.
Importa entender como o pensamento e o nome de Marx estão imersos nos movimentos da história e dos interesses e lutas que a movem. Regimes foram erguidos sob a inspiração de seu pensamento, tantos outros combatidos e abalados temporariamente. A defesa de atos autoritários e violentos tomou igualmente emprestada à força mítica do nome Marx para justificar as mais atrozes barbaridades e, assim, assegurar a estabilidade de regimes totalitários e as ditaduras das elites burocráticas do partido.
Em contrapartida, as lutas sociais do século XIX e XX, das quais resultaram muitas das principais conquistas sociais e jurídicas de ampliação da cidadania e da dignidade humana, colheram no autor do Manifesto Comunista a energia política e intelectual indispensável para o êxito dos propósitos perseguidos e a formulação dos problemas que elas procuravam combater e resolver. Marx foi, e continua a ser, uma das principais fontes dos sentimentos de indignação social e política. Rebeldes, revoltosos e indignados de todas as épocas voltaram e voltarão ao seu pensamento.
Para onde se olha na história e no pensamento dos últimos séculos, uma mesma conclusão é inevitável; Marx foi um acontecimento singular na cultura e na história o qual nada nem ninguém pode ignorar. Enquanto o mundo capitalista durar e a cada nova crise desse sistema, Marx, como um cometa luminoso a rondar sempre por perto, continuará a assombrar àqueles que lutam para preservar o capitalismo a todo custo.