O começo do século XXI e os comportamentos oriundos da contemporaneidade produzem reflexões valiosas, ora bastante esperançosas, ora de extremo pessimismo. Temos captado que uma das mudanças de mais impacto das últimas décadas refere-se à exposição pública pessoal e aos limites de visibilidade social. Se antes o repressivo era imperativo; agora, a permissividade parece ser a regra no que tange à exposição pública pessoal.
Programas de reality shows parecem ser a síntese e grande símbolo desta permissividade, em que a exposição do “privado” possui imenso atrativo para telespectadores que têm pouca capacidade de raciocínio e imensa vulnerabilidade diante de tudo que é oferecido pela indústria do entretenimento. Seus apresentadores (lacaios e sabujos) estimulam os acéfalos telespectadores e exalta os participantes (inclusive chamado-os de heróis) a cada fala “brilhante”(alguma inominável imbecilidade) ou a cada ato “exemplar” (dissimulação, comportamento explosivo ou simulação sexo oral numa banana, por exemplo).
Os reality shows e sua repercussão são apenas um reflexo, um resultado, do sinal dos tempos (do tudo pode, do tudo é relativo, reclamar é caretice), em que a estética sobrepuja a ética e valores humanos. Os seus participantes não são pessoas, apenas objetos descartáveis, narcisistas, que perambulam numa busca (ilusória) do poder do dinheiro ou de, pelo menos, muita visibilidade (mesma que efêmera) para dar sentido a uma vida medíocre e anônima.
Nem mesmo nos aberrantes reality shows a estética do brasileiro comum (aqueles que comumente são considerados feios pela ditadura da beleza) é permitida. Percebam que até a aparência daqueles que fazem parte da minoria (gay, obeso,negro, idoso, etc) participante do programa é de “boa pinta” ou “classe média”. Tal fato cria um curioso paradoxo reflexivo para qualquer sociólogo (ou para a psicologia social), pois os “feios”, o “paraíba”, o “cabelo ruim” e os não-brancos são os que formam a audiência majoritária; mas, num processo de auto-rejeição, exaltam e glorificam a estética dos participantes. Provavelmente, não assistiriam e não iriam tolerar um reality show cujos participantes fossem parecidos com o conhecido cobrador de ônibus, com o catador de lixo, com a faxineira parda que limpa o banheiro do shopping, com o servente de pedreiro ou com o guardador de carros…ou seja, não aceitariam a própria imagem social (que causa asco e repulsa) ou a representação de seus cotidianos de invisibilidade social, vegetativos e medíocres!!!
Tudo muito comum num país com um histórico escravocrata e racista bastante comprometedor. Afinal, foram mais de 300 anos em que os cidadãos de pela branca foram considerados superiores juridicamente e os negros tratados como subespécie (nem mesmo como seres humanos eram reconhecidos). Então, não nos espanta que este resquício esteja vivíssimo na forma de auto-rejeição da maioria ou de exaltação de uma estética “classe média” e “boa pinta”, em reality shows, que são meros reprodutores deste tipo de mazela.
Visibilidade para o biótipo do brasileiro comum (“pobre”, “feio”, “paraíba”) é permitida apenas em programas em que o mesmo seja achincalhado e depreciado, como nos nefastos programas policiais ou mesmo aberrações do tipo Programa do Ratinho ou Casos de Família. Isto só faz com que este mesmo brasileiro não crie identidade consistente e auto-estima, rejeite-se permanentemente e queira se aproximar da estética “classe média”.
Ir até uma banca de jornal e olhar as capas de revista ou observar “semioticamente” os comerciais de TV comprova nossa argumentação. Lembramos do historiador Joel Rufino dos Santos afirmando: “a violência mais competente é a simbólica porque vem disfarçada”.
Na maioria das vezes o comportamento aberrante não usa disfarces, como no curioso episódio em que o ator Marcos Paulo (falecido) fazia “par romântico” com a atriz Zezé Motta (na novela Corpo a Corpo de Gilberto Braga,Rede Globo, 1984). Uma parte do público expressou abertamente sua repugnância escrevendo cartas de teor racista para emissora. Numa delas, aconselhava-se o ator Marcos Paulo (interpretando filho de um empresário rico) a lavar sua boca com sabão, pelo fato de beijar a atriz Zezé Motta (interpretando uma jovem arquiteta).
Uma das estratégias das famigeradas emissoras para persuadir e garantir a audiência dos acéfalos (do suburbano “invisível” à médica chique) é expor gente de “credibilidade” para exaltar o reality show e falar do quanto é “importante” assistir. É assustador pensar: “Se essas celebridades (gente rica, branca e bonita que tenho como referência) dizem que é importante assistir…só posso ter algum problema se pensar o contrário!”
Enquanto os acéfalos se distraem com mais um saradão fazendo gesto insinuante, as dinastias que controlam as emissoras sorriem com seus lucros exorbitantes e vão fazendo a manutenção de seus impérios, que em nada contribuem para que brasileiros que assistem a reality shows, criem discernimento e reflexões em torno de sua própria realidade.
Saibam que mesmo numa programação de entretenimento é possível se fazer refletir e pensar!
Analisar reality shows nefastos, nos faz concluir quanta doença psicossocial está disseminada! Isto é apenas um dos reflexos da contemporaneidade, da falta de valores éticos e descuido com a integridade, com a saúde psíquica dos cidadãos, sobretudo com a dos mais jovens que estão expostos e cada vez mais vulneráveis a adesão de frivolidades como a do tipo de programa mencionado.