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A velha classe média

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Simplesmente fantástico.

 

Por Carlos Fialho
No Novo Jornal

Venho aqui hoje expressar o meu descontentamento com “tudo isso que está aí”, declarar publicamente minha insatisfação diante da insustentabilidade da situação atual, deixar claro o meu pavor ante os rumos periclitantes que temos tomado. Não posso calar ao ver nossa tão frágil sociedade ser conduzida a um ritmo veloz e irrefreável na direção do mais íngreme e implacável abismo de onde despencará se nada for feito para impedir tão trágico destino. Por isso, enquanto houver sangue em minhas veias e fogo nestes olhos atentos, protestarei para não ver triunfarem as injustiças e os malfeitos que tanto oprimem o povo brasileiro.

“Quem sou eu?”, vocês devem estar se perguntando. Pois me permitam apresentar-me. Sou a voz de muitos, milhões até, um representante legítimo da Velha Classe Média.

E, como não poderia deixar de ser, a Velha Classe Média anda deveras descontente com os recentes caminhos seguidos pelos que comandam esta nau chamada Brasil. Posso afirmar de camarote (local onde me sinto bastante à vontade), pois resido no coração deste tão sacrificado estrato social. Tenho sofrido, assim como tantos compatriotas, a alarmante perda de status nesta nova (des)ordem social.

A verdade é que ninguém gosta de perder direitos conquistados com todo mérito. Estudamos nas melhores escolas quando a educação privada era um privilégio para poucos, andávamos de automóveis novos e falávamos ao telefone quando o povão se espremia sabe-se lá em quê para vir trabalhar para nós. Era tudo tão melhor. Naquela época, as coisas eram mais claras e cada um sabia o seu lugar. Podíamos viajar ao exterior com um pouco de economia e comer salmão não era algo tão corriqueiro, mas quando acontecia não era algo pra qualquer um.

Só que um dia, tudo começou a mudar. E, pasmem, não exatamente pra melhor. Vejam vocês que nossos pais sobreviveram à hiperinflação, ajudaram a consolidar o Plano Real, nossa classe sofreu o pão que o Diabo amassou, roeu o osso da recuperação econômica e, na hora do filé, nos tiram o melhor pedaço, fazendo-nos dividir nossa parte com essa gente que acabou de chegar? Devemos abrir mão do que é nosso para essa tal Nova Classe Média que surgiu do nada, como penetras numa festa que nós preparamos para receber amigos e família? É essa a parte que nos cabe deste latifúndio? Injustiça, teu nome é Brasil!

Hoje comemos ainda mais salmões e viajamos pro estrangeiro com maior frequência. O problema é que agora temos que compartilhar muito do que era reservado a nós com cada vez mais gente. Gente que não estudou nas melhores escolas como nós e que nem cursou universidade frequenta agora os mesmos restaurantes, tornando a espera em filas cada vez mais corriqueira e demorada. Os cinemas também andam abarrotados de pessoas que nem sabe se comportar nas sessões. Os aeroportos então, andam insuportáveis. É que pobre agora voa. Ou melhor, a Nova Classe Média pode ir pra São Paulo, Rio, Buenos Aires, Miami e até Paris. Imaginem as filas de check-in como não andam. E digo mais: Imaginem na Copa!

Assim, não tenho nada contra o cara fazer sua primeira viagem de avião, mas é um povo tão diferente de nós, que não sabe se portar numa sala de embarque, que conversa bobagens proletárias nas poltronas da aeronave, que come feito flagelados as insossas refeições servidas pelas cada vez mais decadentes aeromoças.

O pior é que essa não é a única situação em que a ascensão dessas pessoas nos prejudica. Antigamente, quando as distâncias entre as camadas sociais eram maiores e, portanto, mais justas, podíamos arcar com vários funcionários. Hoje, vá tentar bancar o salário de um que seja.
Não dá mais, amigo. Que história é essa de aumentar o salário mínimo todo ano? Quer nos quebrar, governo? É isso mesmo? Sem falar nessa tal de Bolsa Família que só serve para alimentar a vagabundagem. Vá procurar uma criatura que queira trabalhar pra ver se você acha! Aí vem os ministros com essa conversa mole: “o povo tem o direito de comer 3 refeições por dia.” Quem disse? Desde quando? E precisa ser às minhas custas? Antigamente não existiam essas bolsas e eu lembro que era muito melhor. Ninguém morria por conta disso. Três refeições por dia? Isso é pra quem pode e não pra quem quer. Eles nunca fizeram questão. Aí agora vai ficar um monte de gente mimada pelo governo, mal acostumada justamente por quem devia era botar o povo pra trabalhar. Ainda por cima, com o meu dinheiro.

É como disse o Jabor outro dia: estamos construindo um país de bundas moles, a vanguarda do atraso. Pense que eu concordo com ele. Nossa ruína começou quando tiraram um presidente como o Fernando Henrique, homem educado, professor na França, para botar um analfabeto no lugar dele. Um nordestino, sem dedo, que nem fala inglês. Onde já se viu? Ainda por cima, ladrão! Foi o partido dele que inventou corrupção nesse país, foi ou não foi? Quando FH era presidente, não tinha essa roubalheira. O homem conseguiu ser eleito e reeleito sem precisar subornar deputado nenhum. Se tivesse acontecido, tinha saído na Veja. Aí vem o PT de Lula e inventa o Mensalão que foi o maior esquema de corrupção da história do mundo, segundo eu li naquele jornal lá de São Paulo. Tem horas que eu penso que devia era voltar a ditadura, sabia? No tempo dos militares não tinha essa roubalheira toda. Pode ir atrás de qualquer jornal daquela época. Não saía uma linha sobre desmandos no governo.

O estrago que aquele sobrevivente da seca fez com a cabeça das pessoas é tão grande que ninguém sabe mais qual é o seu lugar. Se um cara como ele pode virar presidente, um negro pode entrar na faculdade, um viado pode ir aos mesmos lugares que as pessoas normais e, claro, um pobre pode ir à Europa de avião. Ele é o culpado por esse país esquizofrênico.

É por tudo isso que precisamos nos insurgir, erguer nossas vozes diante de tamanhas injustiças, proteger a nós e aos nossos de tantos e injustificados ataques oficiais, evitar novas espoliações do patrimônio erguido com o suor de nossa laboriosa rotina medioclássica. Somos pessoas de bem, tementes a Deus, respeitadores de limites, defensores de uma moral que já não existe e dos bons e velhos costumes que se perdem com a mesma velocidade de cruzeiro com que percebemos a vitória do mal que vem de baixo.

Afinal de contas, já pertencíamos a esta casta superior da sociedade muito antes da chegada dos novatos vindos dos recônditos subalternos e menos capitalizados. Grupos que recebem dos governantes mimos despudorados e todas as benesses possíveis enquanto nós pagamos impostos insidiosos. Não foi pra isso que nossos pais batalharam tanto. Eles queriam que nós prosperássemos, mas que fôssemos especiais, destacando-nos da multidão. Se outras pessoas, que não passaram pelo que nós passamos tiverem acesso ao mesmo que nós, de que terá adiantado tudo isso?

Se uma distância menor entre os mais ricos e os mais pobres representa o avanço, como defendem alguns, acho que poderíamos recuar um pouco que fosse. Só pra reajustar as coisas de forma a deixar tudo como era antes. Afinal, todo mundo sabe que a classe média morre de medo de ficar pobre. E o governo permitindo o ingresso de milhões de neófitos na camada intermediária da distribuição de renda, está de certa forma tornando realidade um dos nossos maiores medos. Não que estejamos ficando pobres, mas os pobres estão ficando como nós. O que, no fim das contas, dá no mesmo. Agora me diga se posso estar feliz com essa situação. Não me resta outra opção a não ser lutar contra “tudo isso que está aí”. Porque somos velhos, mas de bobos não temos nada.