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“As Aventuras de Pi” mostra visão alternativa do Sagrado

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Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose”

Indicado ao Oscar de Melhor Filme, “As Aventuras de Pi” (Life of Pi, 2012) surpreende ao nos oferecer uma visão alternativa sobre a experiência do Sagrado, bem diferente de filmes como “Cloud Atlas” e todos os clichês new age sobre sinfonias e harmonias cósmicas: uma experiência baseada no simultâneo fascínio e  terror ao descobrir que o universo nada mais é do que o resultado de sucessivas camadas interpretativas, relatos de diversas religiões que o protagonista busca por toda vida. Lá fora estão apenas os espelhos e o vazio – no filme representados pelo mar, o céu e um tigre, companheiros de jornada de Pi – que refletem de volta os signos que criamos na esperança de dar um sentido ou propósito a um cosmos hostil e violento.

Vamos comparar duas cenas: Certa vez perguntaram para o pensador expoente da chamada Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, qual era o sentido da vida. “Se a vida tivesse sentido não estaria fazendo essa pergunta”, disparou Adorno.

Corta para uma das sequências iniciais do filme “A Vida de Pi” onde o protagonista leva um pedaço de carne para o tigre-de-bengala Richard Parker preso em uma jaula no zoo da família. Ele acredita que o tigre possui uma alma e que virá docilmente comer a carne em suas mãos. Quando o tigre já está ameaçadoramente próximo, seu pai o arranca de frente de jaula e diz enfurecido: “Acha que esse tigre é um amigo? Ele é um animal, não um boneco!”. “Animais têm alma, eu vi nos olhos dele”, responde Pi chorando. “Animais não pensam como nós… Quando olha nos olhos dele você vê suas emoções refletindo de volta, nada mais!”, dispara o pai.

Se para Adorno a pergunta feita a ele já reflete uma desconfiança de que a vida não tenha mesmo sentido algum, em “As Aventuras de Pi” o universo nada mais é do que um espelho que reflete nossos desejos e anseios de que tudo tenha algum propósito por existir. Reflexo é a palavra chave de compreensão das quase duas horas de filme e seus principais personagens são o tigre, o mar e o céu: todos são ao mesmo tempo refletidos e reflexos em imagens belíssimas, mas também de desencanto para Pi – o sentido que ele tanto procura parece estar nele mesmo, refletido no universo que o rodeia. Pi não vê o mundo, mas um signo arbitrário do mundo construído por ele mesmo para criar um sentido. E o mundo responde com eventos arbitrários como a morte, tormentas e violência.

O filme inicia com a explicação para a escolha do estranho nome do protagonista, igualmente um evento arbitrário: seu tio e melhor amigo do seu pai, um exímio nadador, considerava a piscina pública de Paris como a melhor do mundo pela pureza da água. Se quisessem que o filho tivesse uma alma limpa deveria, portanto, se chamar “Piscina Monitor”, o nome a piscina parisiense.

O longa é baseado no livro escrito em 2001 por Yann Martel, uma narrativa parte fantasia e outra parte o relato de luta pela sobrevivência onde procura discutir o lugar do homem na Natureza e diante de Deus. Pi aos 40 anos é entrevistado por um jornalista sobre a história que mudou a sua vida: ser o único sobrevivente de um naufrágio e a sua luta pela sobrevivência. A trama, toda em forma de flashback pelo protagonista, criará uma situação metalinguística interessante: em qual versão da história devemos acreditar? De Pi, do jornalista que transcreverá a história ou do autor do livro que supostamente teria se baseado na entrevista do jornalista?

Pi é filho de um dono de zoológico, vegetariano e muito religioso. Na sua busca pelo sentido da existência acaba misturando hinduísmo, islamismo e cristianismo. Irônico, seu pai comenta: “pelo menos no cristianismo você carrega a culpa de apenas um Deus…”.

Mas quando Pi começa a se encontrar na vida e conhece um grande amor, seu pai decide recomeçar a vida no Canadá para onde levará a família e os animais do zoo que serão vendidos. Mas, no meio da viagem em pleno Oceano Pacífico, uma tormenta afunda o navio matando sua família. Ficam vivos Pi, um orogotango, uma zebra, uma hiena e o ameaçador tigre-de-bengala, todos em um barco salva-vidas.

Começa então a sua luta pela sobrevivência, uma jornada que colocará Pi diante da violência de seus novos companheiros (a pequena embarcação cria uma pequena amostra da cadeia alimentar terrestre), a necessidade de abandonar o vegetarianismo para se alimentar de peixes e as sucessivas provações que abalam sua relação com Deus.

O mar, o céu e o tigre

 

O detalhismo do diretor Ang Lee e a primorosa fotografia criam situações ao mesmo tempo belas e poéticas dentro do terror das tempestades oceânicas, a escuridão e o onipresente olhar feroz do tigre Richard Parker. A luta de Pi será manter o tigre alimentado e sob controle.

Ao contrário do filme “A Viagem” (Cloud Atlas, 2012 já analisado pelo blog – veja links abaixo) que busca a experiência do sagrado como uma percepção intuitiva do Todo onde nada mais resta ao homem do que se libertar da sua ignorância para ter a capacidade de perceber a harmonia da sinfonia do Universo, “As Aventuras de Pi” vai por outro caminho muito próximo da experiência da gnose: a experiência do Sagrado reside dentro de nós mesmos.

Como dizíamos “reflexo” é a palavra-chave da narrativa: as belíssimas cenas onde o mar e o céu se refletem mutuamente até se fundirem (seja na calmaria ou nas tempestades) e a recorrência dos momentos em que Pi e o tigre ficam frente a frente se encarando. O universo parece ser uma sequência de reflexos onde o homem está no centro de tudo: tudo o que ele pode observar é o reflexo do seu universo interior na natureza.

Por isso a experiência do Sagrado de Pi é um misto de maravilhamento e espanto, fascínio e terror: maravilhamento e fascínio pela grandiosidade do caos e violência em que está metido e espanto e terror ao descobrir que, na verdade, tudo é arbitrário e sem sentido: a suposta existência da alma do tigre na verdade se resume a sucessivas técnicas de condicionamento que mantém Pi sob o controle da situação e longe das garras do animal. Não há comunicação ou harmonia, apenas submissão e subjulgação de uma cadeia alimentar onde o homem se encontra no topo graças à Razão – representada no filme pelo manual do kit de sobrevivência do bote salva-vidas.

O Sagrado como “experiência numinosa”

 

Esse tema faz lembrar o conceito do Sagrado como “experiência numinosa” tal qual descrita por Rudolf Otto no seu livro “A Ideia do Sagrado” de 1917: numen é caracterizado como um mysterium tremendum et fascinans – onde o mysterium representaria o das ganze Andere (o totalmente outro), o qualitativamente diferente, que apresenta dois conteúdos: o tremendum, elemento repulsivo, que causa medo ou terror, e o fascinans, o que atrai, fascina.

É claro que estamos recorrendo aqui à noção de numinoso e Sagrado não no sentido religioso de uma experiência mediada por um sistema simbólico de uma determinada religião, mas no sentido de um sentimento ou consideração que provém da base arquetípica da psique, o “sentimento avassalador da totalidade da alma.”

A jornada de Pi no oceano mostrará que a experiência do Sagrado está além das religiões institucionalizadas, mas na descoberta do terror do vazio do mar sem fim, como um espelho infinito que reflete as tentativas de atribuir algum sentido místico para algo hostil e imprevisível.

Esse tema lembra o estranho oceano do planeta do filme “Solaris” do russo Andrey Tarkovsky capaz de materializar as memórias e sonhos dos humanos, lembrando a famosa frase de Nietzsche que, quanto mais é encarado, mais profundamente se vê o interior de quem encara.

 

Metalinguagem

 

Outra grande virtude de “As Aventuras de Pi” é a ironia metalinguística que reforça a mensagem central do filme: criamos um signo do mundo que, depois, nos envia de volta um reflexo desse signo. E chamamos isso de “Deus”, “sentido” ou “propósito”. O protagonista terá que criar uma segunda versão da sua história, menos fantástica para a companhia de navegação explicar o naufrágio. Por sua vez o repórter terá outra versão que, supostamente, resultará no livro que será a base do filme que acabamos de assistir.

Essa verdadeira espiral metalinguística que está nas entrelinhas do filme reforça o espanto da descoberta na jornada sagrada de Pi: o universo nada mais é do que sucessivas camadas interpretativas, relatos de diversas religiões que ele buscou por toda vida. No final, a experiência do Sagrado esconde-se nele mesmo em múltiplos espelhos que se refletem, assim como o céu, o mar e o olhar do tigre Richard Parker.

Ficha Técnica

  • Título: As Aventuras de Pi (The Life of Pi)
  • Diretor: Ang Lee
  • Roteiro: David Magee baseado no livro de Yann Martel
  • Elenco: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Rafe Spall, Gérard Depardieu, Tabu
  • Produção: Fox 2000 Pictures, Haishang Films
  • Distribuição: 20th Century Fox Film Corporation
  • Ano: 2012
  • País: EUA, China, Taiwan