A professora Marilena Chauí nos ensinou que o discurso ideológico é sempre lacunar. Não se trata de uma mera falsificação dos fatos. Ele carrega um elemento de realidade que se alia a aspectos “não-ditos”, tornando sua base argumentativa verossímil.
A ênfase num “país decente”, na forma como vem sendo feita pelo conservadorismo, serve como um bom exemplo daquilo que a filósofa apresentou em suas obras. É aparentemente inquestionável ser a favor da moralização da política. Afinal, quem não é contra a corrupção? No entanto, o discurso perde sua evidência quando se procura ultrapassar às bordas e qualificar os interesses opacos em jogo.
A defesa da decência na chamada vida pública parte do pressuposto de que o problema do Brasil é o da corrupção. Mais. Estabelece um pano de fundo em que o país do futebol, local privilegiado da malandragem – quantos livros o midiático antropólogo Roberto Damatta vendeu floreando este preconceito com suas artimanhas escolásticas? -, é comparado a uma versão idealizada do “primeiro mundo”, aonde tudo funciona.
Nessa lógica, a desigualdade se torna algo secundário. Pior. Tudo se transforma numa questão do bom emprego dos recursos arrecadados na forma de impostos. Portanto, basta colocar alguém dotado de uma moral superior no poder para tudo caminhar corretamente. O eleito, alçado a condição de salvador da pátria, não precisa explicitar sua agenda política, enfrentar contradições sociais e antagonismos de classe.
Essa cantilena nos deu Jânio Quadros, ajudou a legitimar o golpe militar de 1964, trouxe o caçador de marajás, todos com uma ideia clara: construir um Brasil decente… para os filhos da casa-grande. Uma limpeza da política conjugada a um cenário supostamente meritocrático em que, na verdade, uma minoria parte pilotando uma ferrari e a grande maioria compete na sela de um jumento e é responsabilizada pelo resultado da disputa. Enfim, surge um mundo legitimado sem espaço para Bolsa Família, programa de cotas nas universidades públicas para negros e pobres, combate da homofobia, do racismo.
O topo da pirâmide social e a classe média tradicional, que olha mais para cima do que para baixo, dormem em paz com a certeza de que representam o que resta de bom nesse mundo degradado.