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Usando a Lei Para Discriminar

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Unknown_41Aspie sofre discriminação por ser interditado judicialmente

 

Por Ivenio Hermes e Nataly Pessoa(*)

Preconceito Atual

Como já não bastasse o preconceito enfrentado por muitos autistas na sociedade, existe também a discriminação enfrentada por alguns autistas pelo fato de serem interditados judicialmente.

O caso do jovem Eduardo Sales Bastos não é diferente, ele é Asperger e tem 28 anos de idade, e foi entrevistado pela equipe do Jornal Nacional em uma matéria exibida na última sexta-feira 18 de janeiro de 2013.

O rapaz foi interditado parcialmente e por esse motivo sofre muita discriminação, principalmente por parte de familiares e colegas de trabalho. Segundo Eduardo, esse processo de interdição ocorreu por pressão de alguns dos seus familiares, numa estratégia para continuar que ele continuasse como pensionista do seu pai, do contrário, não poderia manter o benefício.

Eduardo trabalha, demonstra ser muito inteligente e apresenta talentos para seguir uma profissão desejada. Tem muita vontade de ser independente e exercer atos da vida civil normalmente, como votar, por exemplo. Eu sou asperger, tenho verbalização desenvolvida e QI mediano ou acima da média mundial como todos os asperger apresentam. Por fim, todos os autistas são capazes e não gostaria de receber pensão do governo.” Diz.

Análise do Caso

A situação em que Eduardo se encontra foi criada levando em consideração o artigo 4° do Código Civil que prevê:

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV – os pródigos.

Ocorre que o rapaz não está enquadrado no inciso II, pois tem discernimento mental normal e nem no inciso III porque seu desenvolvimento mental é completo. Assim, interdição parcial capitulada nesse artigo pode deixar de existir. Para que tal cessação desse dispositivo legal ocorra, é necessário um novo laudo médico declarando plena capacidade cognitiva e de discernimento. Sendo cientificado de ofício, o juiz poderá cessar a interdição.

NERY (2011, p. 216) diz que no caso de enfermidade ou debilidade mental, é preciso “que se faça vislumbrar não dispor o sujeito de direito de suficiente discernimento para o exercício pleno da capacidade de realizar determinados atos ou vivenciar certas situações concretas da vida civil.” Portanto, não está perfeitamente evidenciado que Eduardo tenha sido interditado em decorrência da sua incapacidade para exercer atos da vida civil, colocando a interdição dentro dos lindes de um descuido de seus responsáveis, ou ainda demonstrando comprovação da afirmação de Eduardo de que sua situação fora motivada por conta de uma pensão envolvida.

TARTUCE (2012, p. 81) apresenta um discernimento bem ímpar sobre a situação dos relativamente incapazes. O autor afirma que o inciso III, art. 4º do CC/2002 “abrange os portadores de síndrome de Down e de outras anomalias psíquicas que apresentem sinais de desenvolvimento mental incompleto”, ou seja, não seria o caso de Eduardo, que é um ser humano normal do ponto de vista do desenvolvimento mental. Inclusive, até mesmo o portador da síndrome de Down, dependendo da situação, pode ser considerado plenamente capaz, afirma TARTUCE no mesmo tópico.

Assim, no âmbito jurídico, algo de injusto permanece ocorrendo revestido pela falsa pretensão de amparo social na vida de Eduardo Bastos.

Situações Decorrentes

Eduardo Sales Bastos trabalha e inclusive, sob sua atividade laboral ele comenta: “No meu serviço todos são legais. Eu sou assistente de loja e eu somente eu tenho que ficar no estoque? Por que isso? Eu gosto de ficar em outro local da loja, como o salão de vendas. Mas o novo gerente não deixa, paciência, né?” Por algum motivo, o patrão dele não o permite estar em um local onde haja a possibilidade de interagir com outras pessoas.

Independente da natureza discriminante da atitude do patrão, o fato de Eduardo trabalhar já demonstra nulidade de sua interdição, pois por analogia, usando como base o argumento que atinge o menor de 16 anos que tenha economia própria e de acordo com FIUZA (2011, p. 134) que afirma:

“A emancipação legal é automática, não sendo preciso nenhum outro ato complementar. Basta que o incapaz se amolde a um dos seguintes casos: casamento, serviço público efetivo, colação de grau em curso de ensino superior e exercício de atividade civil ou comercial ou existência de relação de emprego, desde que em função deles, o menor com 16 anos completos tenha economia própria”.

Eduardo é perfeitamente capaz de trabalhar e de obter sua economia própria se assim o permitirem. Quando fala da atividade que desenvolve atualmente, ele afirmou: “Não pude mostrar que eu trabalhava, nem usar roupa e crachá no horário de trabalho para a matéria sobre autismo na Rede Globo. Gostaria de ter mais reconhecimento, pois trabalho na empresa há quatro anos, sou eficiente e gosto do que faço.”

Falta um pouco de vontade e de quem acredite nos potenciais do rapaz, que pode subsistir de seu trabalho e não necessariamente de uma pensão.

Para tanto, é de extrema importância que as associações ou movimentos que representem os autistas ou lutem pelos seus direitos, se mobilizem e deem atenção ao caso de Eduardo e de outros que podem estar acontecendo longe dos holofotes da mídia.

Eduardo Bastos não vive à margem do convívio social, nem possui problemas mentais de discernimento que causem sua incapacitação, ele é inclusive, um dos fundadores da MOAB – Movimento Orgulho Autista Brasil e um ser humano como qualquer outro.

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(*)Nataly  Pessoa é graduanda de Direito pela Uni-RN e membro da ABRAÇA: Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa com Autismo e Pesquisadora da inclusão social das pessoas com autismo.

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REFERÊNCIAS:

BRASIL DF BRASÍLIA. Casa Civil – Subchefia Para Assuntos Jurídicos. Presidência da República (Org.). CÓDIGO CIVIL: LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Brasília DF: Editora Rideel, 2002. 193 p. (Volume Único). Publicada no DOU de 11-1-2002.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado: Edição revista, atualizada e atualizada até 12.07.2011. 8. ed. Barra Funda SP: Editora Revista Dos Tribunais, 2011. 1764 p.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: revista, atualizada e ampliada. 2. ed. São Paulo – SP: Editora Método, 2012. 1411 p.

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. 15. ed. Belo Horizonte – Mg: Del Rey, 2011. 1216 p. (Volume Único).