Quem pode deter o curso das águas?
Por Ivenio Hermes
Espetáculo anual de desgraça e suas vítimas costumeiras
“O mundo é tão vazio se pensarmos apenas em montanhas, rios e cidades. Mas conhecer alguém aqui e ali que pensa e sente como nós, e que embora distante, está perto em espírito, eis o que faz da terra um jardim habitado.” Goethe.
No Rio de Janeiro todo o ano chove, é sazonal, se não chover muito, chove pouco, mas de uma forma ou de outra chove.
É uma das notícias que mais vende por temporada, é como se todo ano esse veio de águas no qual as chuvas se convertem, se transformasse também num meio sensacionalista de explorar a miséria humana e a desgraça das minorias como forma de manter as vendas em alta.
É ótimo pensar assim, pois se acha um culpado fácil. A culpa, entretanto, não é da imprensa, que cumpre seu papel de informar, se o faz de forma exploradora ou com sensatez de um meio de comunicação realmente comprometido com a sociedade, é algo que deve ser pesado numa balança muito bem aferida antes de qualquer coisa, pois o inimigo público está naqueles que deveriam utilizar o planejamento estratégico na gestão pública para evitar que o fato, já tão corriqueiro, continue se repetindo.
O espetáculo da segurança pública que através da defesa civil se prepara para evitar novas enchentes, novas destruições, novas desgraças, não existe. O que se observa é a ausência do poder público que não se previne em ações de conscientização e prevenção para que o espetáculo anual de desgraça e opróbrio continue a chamar atenção do mundo sobre um estado rico como o Rio de Janeiro.
Destarte, o espetáculo anual, não é dado pela defesa civil, cujos esforços criam heróis de fama curta, prontos para serem substituídos pelos heróis das próximas estações de chuvas, além dos heróis do próprio povo, que na tentativa de sobreviver, negam suas próprias necessidades em prol de ajudar aos que precisam ainda mais.
É preciso deter as estatísticas e dar nome aos rostos, à dor daqueles que perdem tudo, pois embora distantes e desconhecidas, essas vitimas costumeiras sentem as dores que sentimos e essas dores não cessam porque a chuvas cessam, elas não param porque no ano que vem teremos novas vítimas para encher os olhos de lágrimas dos observadores distantes, mas que mantém os olhos vertendo lágrimas daqueles que perderam seu ente ou entes queridos, que eram as flores e belezas de seu jardim familiar, insubstituíveis e não meros números da estação.
Falha costumeira e desastre evitável
“Poucos rios, surgem de grandes nascentes, mas muitos crescem recolhendo filetes de água.” Ovídio.
Justificando os investimentos em razão de grandes eventos que se realizarão no Rio de Janeiro, a segurança pública segue a mesma corrente de ações que jogam o problema de um lado que chama muita atenção para um lado que chama menos, ou seja, que não está tão em evidência.
É por isso que as Unidades de Polícia Pacificadora somente livraram algumas localidades da área que estará sob os olhares mundiais nos grandes eventos que surgirão, levando o crime organizado, o tráfico de drogas e armas e outras novas modalidades de ação criminosa para Niterói, São Gonçalo, Cabo Frio, enfim, de um lado para outro do estado. O impacto dessa ação se mostrará no futuro quando locais antes tranquilos e com qualidade de vida mais elevados se transformarem em novos refúgios do crime.
Essa falha apresenta-se viciosamente costumeira. É por isso que a Defesa Civil não consegue estar preparada para o desastre evitável que todo ano acontece, afinal, não há interesse em investir em locais como a Baixada Fluminense que abriga diversos municípios do Rio. Esses lugares estão em notoriedade para que se pare de olhar para eles como guetos do crime, mas não estão para ações de saneamento, limpeza, prevenção de doenças, melhoras da qualidade de vida de pessoas iguais a qualquer outras, com apenas uma diferença, o poder econômico.
O maior município do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, a região serrana, a região dos lagos e outras regiões não são objetos do olhar midiático e nem do poder público a não ser quando o assunto é a estação das chuvas e as vítimas sem nome, que viram apenas estatísticas, menos para suas famílias cujos nomes não serão esquecidos no próximo ano.
Os rios de enchente e morte não surgem de grandes nascentes, eles são oriundos dos filetes de um legado disperso de ações de segurança pública que não se restringe apenas ao que se pode ver, mas também se estende às boas práticas ações que evitem esse fantástico show da morte anual.
Quem pode deter o curso das águas?
“Jamais desconsidere a maravilha das suas lágrimas. Elas podem ser águas curativas e uma fonte de alegria. Algumas vezes são as melhores palavras que o coração pode falar.” A Cabana – William P. Young.
Ninguém pode deter o curso das águas, mas o poder público pode evitar o fluxo de destruição que esses rios formados pelas chuvas e pelas lágrimas das vítimas se repitam todos os anos.
As lágrimas derramadas devem ser consideradas para que os corações se motivem a deixar de lado a indiferença daqueles que podem trabalhar para cessar o ciclo anual de mortes e perdas materiais.
É preciso parar com quadros improvisados nos programas de televisão como Bem Estar, que ajudam, mas nessas ocasiões mostram utopias como manter certos materiais em casa, como botas, sacos e ainda apresentam médicos em seus bonitos e limpos jalecos ensinando prevenção para quem perdeu tudo e até familiares. Eles não têm a sensibilidade para entender que a senhora mostrada passando água na bolsa recuperada, não estava lavando a bolsa, estava apenas retirando o excesso de sujeira que ela podia enxergar de um objeto que já fora retirado da lama.
Informar para quem não tem mais nem onde dormir que no posto de saúde mais próximo há hipoclorito de sódio disponível ou que se deve ferver a água por bastante tempo para ela se tornar adequada ao consumo, como se a palavra “bastante” tivesse um sentido mensurável de tempo como minutos e horas possuem.
É necessário que o poder público, que pode promover ações ininterruptas de reeducação, de conscientização e de transformação pela inclusão de disciplinas nas escolas que ensinem as crianças de hoje a não serem vítimas amanhã. E que as lágrimas derramadas nessas chuvas não sejam desconsideradas em minutos de venda de imagens e futura angariação de votos em cima de cidadãos que não foram adequadamente formados, para poderem estar sempre à mercê daqueles que locupletam da humilhação de outros seres humanos.
Não se pode deter o fluxo das águas, mas se pode evitar a que a fúria da natureza agredida e suas consequências sejam minimizadas.
Segurança pública vai além de ações policiais, é uma ação humana de solidariedade e fraternidade que visa proteger aqueles que mais precisam, é uma ação humana que somente têm sentido quando há o sentimento de empatia de entender, perceber e sentir a dor das outras pessoas, numa interpretação emocional e racional da vida.