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As (R)Emoções da Copa do Mundo: o contrato travestido de Lei

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Por Magnus Henry da Silva Marques

(Estagiário de Direito do Centro de Referência em Direitos Humanos-UFRN, membro do Programa de Educação Popular em Direitos Humanos Lições de Cidadania, militante do Levante Popular da Juventude-RN)

Nunca as redes sociais estiveram tão cheias de manifestações contra a apropriação dos recursos públicos por empresas privadas como nesse fim de semana em função da realização de mais uma edição do polêmico Carnatal. De fato é de se indignar ver hospitais superlotados, escolas sucateadas, enfim, políticas públicas sendo negadas à população enquanto a Administração prontamente destina uma parcela notória dos seus recursos para viabilizar a realização de um evento privado sem nenhum caráter popular.

Curiosamente essas características se repetem em outro evento que toda a cidade (e país) se prepara para recebê-lo e que trará, com toda a certeza, consequências mais destrutivas e duradouras. Para a realização do evento mais esperado que 21 de dezembro de 2012, pode tudo. Desde desapropriar famílias sem garantir um mínimo de direitos até queimar a Constituição Federal publicamente. Os empresários e os “representantes” do povo na gestão da coisa pública estão em euforia: falta um pouco mais de um ano para o grande dia.

Há uma grande força tarefa para que esse evento seja realizado a qualquer custo, mesmo que isso comprometa a construção de escolaS, compra de merendas, pagamento de servidores públicos, desapropriação sem garantia de moradia digna. Nada disso importa aos gestores enquanto não houver garantia da realização da Copa 2014, para isso, vale abrir mão da soberania do país e até, discretamente, fazer esquecer-se de alguns dispositivos constitucionais que possam incomodar a caridosa FIFA.

Para isso, os “representantes” do povo que ocupam as esferas do legislativo já se organizam para criar mecanismos jurídicos que transformem a toda poderosa FIFA em uma super-pessoa jurídica. Que vão as favas os princípios históricos que regem o Direito como a isonomia, afinal, muito mais oportuno quebrar esse quase sacro princípio em benefício daquela que trará o desenvolvimento, enquanto isso, ele é usado para barrar progressos exigidos pelos mais diversos movimentos sociais.

Bradar aos quatro cantos que a lei homofobia ou as cotas raciais criam super-cidadãos por ferir o princípio “republicano” da isonomia é frequente às camadas mais conservadoras da sociedade, mas, curiosamente, para eles a FIFA pode sim receber tratamento especial que não é deferido a nenhuma outra pessoa jurídica da mesma natureza, como ser isento de pagamento de custas processuais, como prevê aquela lei-contrato geral da copa (12.663/12). Esse benefício foi uma conquista histórica de movimentos que reivindicavam um acesso à justiça efetivo, para que todos os indivíduos pudessem exercer o seu direito à ação sem que sua condição econômica se constituísse como um óbice, portanto, a “Justiça gratuita” só deveria ser concedida a quem dela realmente necessitasse para que seu direito de ir ao judiciário fosse exercido. Ora, qual a justificativa para conferir tal benefício à FIFA? Em qual padrão distorcido essa associação se insere no rol de necessitados da justiça gratuita para exercer o direito de ação?

O cinismo dos legisladores chega ao ponto de ignorar tradicionais doutrinas administrativistas e criam uma figura desfigurada e capenga de responsabilidade civil do Estado que mais uma vez fere o princípio da isonomia. Aquela categoria, que parece ter esquecido a sua função de zelar pelos interesses do povo brasileiro, aceitou que fosse imposta à União a responsabilidade por qualquer ato contra a FIFA, evidenciando que essa associação não tem nenhum interesse em perder, mesmo que isso implique no prejuízo injustificado do Estado. Enquanto isso, para os legisladores, não importa o que pensam os juristas, a soberania do país, os cofres públicos, o que interessa a eles é agradar a FIFA e suas empresas parceiras que tão caridosamente trarão desenvolvimento ao país que há pouco conseguiu se desvencilhar da sombra do imperialismo de outra potência (ou seria algum outro motivo obscuro?).

A criatividade dos legisladores não tem limites quando se trata de pensar maneiras de agradar a FIFA. Bem sabemos que a autorização para o uso dos bens públicos é de capacidade da Administração Pública, portanto, a autorização para que os ambulantes pudessem ou não vender seus produtos na proximidade de onde será realizado não deveria caber à FIFA, o que na prática ocorrerá. Isso fica evidenciado com o caso dos acarajés da baiana. Ora, a Administração Pública tem total legitimidade para autorizar a comercialização desse gênero alimentício mesmo por ambulantes, no entanto, ao invés de usar de seu poder legítimo, após grande mobilização nas redes sociais, o governo, em resposta, oficiou a FIFA para pedir que a super-pessoa jurídica autorizasse a venda de acarajés. Para muito além dos acarajés, a proibição de ambulantes nas proximidades dos locais do evento representa uma limitação ao meio de ganhar a vida de uma parcela considerável da população de nosso país, por isso, a mobilização deveria ser ampla, não apenas ao caso baiano.

Por fim, o “contrato” transvestido de Lei sancionado no dia 5 de junho desse ano tem pontos muito mais problemáticos que a permissão ou não de venda de bebidas alcóolicas nos estádios, como faz crer a grande mídia. Nele, o Brasil abre mão de sua soberania em nome da realização do mega-evento em questão em seu solo, garante grandes lucros à super-pessoa jurídica FIFA, e, para isso, cria instrumentos jurídicos deficientes. Em meio disso tudo, é clarividente a intenção de se repetir a estratégia de desenvolvimento do país que já se provou insuficiente para a garantia de direitos e da soberania plena do Brasil. Os poderes que se venderam à FIFA talvez se sintam um pouco saudosistas dos tempos coloniais.