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Por que a família estaria ameaçada?

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Por Antonio Quinet

(psicanalista, membro da EPFCL)

As imagens das passeatas nas ruas e os textos, inclusive de psi, que apareceram neste mês de novembro na França, contra o projeto de lei sobre o casamento gay e a adoção de crianças por casais gay são impressionantes. (Vide abaixo)

Esse projeto de lei não pretende de modo algum abolir o casamento, nem tirar da legalidade a adoção das crianças. Ao contrário, ele não faz nada além de ampliar e consolidar mais a intervenção do Estado nas relações afetivas e na proteção e educação das crianças órfãs ou indesejadas. E, no entanto são extremamente violentas as reações dos que são contra.

Porque uma lei que responde ao desejo legítimo de os homossexuais legalizarem suas relações entre si, bem como com as crianças que eles criam e que, assim, garantiria certos direitos civis de casal, de herança, de seguro, etc. poderia ameaçar a instituição familiar?

O que está então em questão? Mais uma vez a homossexualidade – que aparece como o Outro em relação à ordem estabelecida e aceitável. Seria mais tranquilo deixar os gays na ilegalidade, na gaiola das loucas, no bairro do Marais, sob as arcadas a noite do Palais Royal em busca do tempo perdido (cf. Proust), em suma, em todos os guetos, exceto nas sagradas instituições do Estado.

No ocidente a homossexualidade já foi pecado (ainda é para certas religiões), um crime (ainda é em certos países) e uma patologia (ainda é para certas pessoas aí incluindo – infelizmente – certos psi). Todas essas posições retornam a galope para defender a « boa família » na França. E a saúde e o equilíbrio psíquico dos homossexuais estão de novo na berlinda.

Foi o movimento gay desencadeado após Stonewall, nos Estados Unidos, que forçou a psicanálise oficial sair de sua posição patologizante. E apenas em 1992 a Organização Mundial de Saúde aceitou o ponto de vista da American Psychiatry Association de retirar a homossexxualidade da Classificação Internacional das Doenças (CID-10). Estarão os psi mais uma vez na história a reboque de um movimento que luta contra preconceitos decadentes?

Não é verdade (cf. artigo no Le Monde, 17/11/2012) que Freud considerava os homossexuais perversos. Esse é um argumento do qual se serviriam certos psicanalistas que seriam contra esse projeto de lei. E é preciso lembrar, aliás, que para Freud a sexualidade é em si “perversa”, pois tal é a estrutura da pulsão de todo ser humano que se satisfaz sempre com uma parte do corpo do outro. Não há pulsão homossexual A pulsão se declina em oral, anal, escópica e invocante com um caráter mais ou menos sádico ou masoquista. Para Freud, a homossexualidade se escreve no plural, pois não há apenas uma, e sim várias modalidades, do mesmo modo que a heterossexualidade. A diversidade é a característica da sexualidade humana. Ela sempre foi. Mas hoje ela sai do armáriocomo antigamente. 

A vida sexual, segundo Freud, é determinada pela combinatória de três fatores: as características físicas sexuais (H ou F), características mentais (H ou F) e escolha de objeto (H ou F) onde todas as combinações são possíveis. Esta disjunção entre o biológico (XX ou XY), posição sexual e escolha hetero ou homo, é constantemente ameaçada pelos espíritos convencionais que tendem a reduzi-las ao biológico. O sexo do humano é desnaturalizado pela linguagem e cada um recebe através da cultura o que deve fazer para se portar como homem ou mulher – os semblantes sexuais. Mas nem a anatomia, nem a cultura determinam a posição sexual, e menos ainda a escolha dos parceiros de gozo.

Os que são contra essa lei rejeitam a evidência de que em tudo o que é humano as instâncias simbólicas e culturais dominam as naturais. Apesar de todas as transformações culturais e de todos os estudos antropológicos, insistem em afirmar que, no gênero humano,  pai, mãe e filho são os mesmos que os da família biológica. Não, não é verdade que “o filho  é o resultado do orgasmo de um homem e de uma mulher” (Frigide Barjot, Le Monde, 17/11/2012). Esta redução biologizante é no mínimo perigosa. Quem demonstraria hoje que uma criança criada por seus pais biológicos seria uma garantia de sua saúde mental? Ninguém ousaria tampouco inventar testes para avaliar a capacidade das mulheres e dos homens de serem mães e pais indistintamente.

Talvez seja culpa dos psicanalistas de não terem passado à sociedade os fundamentos oriundos da prática de mais de um século de divã: que os XX e os XY, os machos e as fêmeas do ser falante não coincidem forçosamente nem com as posições (psíquicas) de homem e de mulher, nem com a de sujeito e de objeto nas relações afetivas e sexuais e nem determinam qualquer escolha de parceiro de gozo.

Não têm qualquer fundamento os psi que fazem apelo ao complexo de Édipo para irem contra esse projeto de lei, pois não se deve confundi-lo com o edipianismo psicológico normativo. A psicanálise mostrou que o complexo de Édipo é não apenas um momento constitutivo da infância, e sim, sobretudo, a estrutura psíquica que articula o desejo e a lei, funda a bissexualidade para ambos os sexos e põe em evidência a tragédia do gozo, cujo paradigma é o incesto. Para Freud, o que ele nomeia de  “complexo de Édipo completo” (1923) para todas as crianças compreende ao mesmo tempo ter a mãe como objeto e ser um objeto para o pai. A bem da verdade, “qualquer um pode fazer uma escolha homossexual, e mesmo deve tê-la feito em algum período de sua vida, conserva-a em seu inconsciente, e se defende contra ela com todas as forças” (Freud, 1910).

Por outro lado, encontra-se a homossexualidade como prática sexual nos sujeitos de todas as estruturas clínicas (cada um  pertence a uma, mesmo que não tenha sintomas): na neurose (histeria, neurose obsessiva e fobia), na psicose (esquizofrenia, paranóia, melancolia) e  na perversão (voyeurismo, fetichismo, sadismo, masoquismo, etc.). A homossexualidade não é nem uma perversidade nem uma loucura, ela é transestrutural. Trata-se de uma escolha de gozo sexual que se encontra em toda parte.

A verdadeira aceitação do Outro na sua estrangeiridade, na sua diferença é a tolerância em relação ao modo como o Outro goza: de seus direitos, de sua crença, de sua sexualidade. O que é uma ironia das palavras e do sexo, é que hoje uma das representações do Outro, o Heteros (como o escreve Lacan a partir do outrem em grego) é um casal homo! Ora, não há sexo entre iguais, a diferença sexual, no plano psíquico, está igualmente presente no casal XX-XX ou XY-XY. Inclusive, um casal XX-XY pode fazer mais par de jarra do que os outros.

Qual a relação entre um casal XX-XY e as funções da mãe que nutre e do pai que protege? E estas são ainda válidas? Ou se trata de semblantes sociais que passam de geração a geração? Se um XY não pode parir e um XX não pode ejacular nada impede que possam, indistintamente, exercer com toda a legitimidade as funções materna e paterna.

Esperemos desta vez que os psicanalistas estejam à altura da subjetividade de sua época e que sua experiência do inconsciente e do particular do desejo de seus analisantes possa contar no debate e na conquista das zonas ainda obscuras de nossa civilização.

 

Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2012

Antonio Quinet, psicanalista, membro da EPFCL

PS: Abaixo alguns links a partir dos quais se pode visualizar as reações na França ao projeto de lei citado.

http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/11/08/l-alterite-sexuelle-survivra_1787902_3232.html?xtmc=&xtcr=1
http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/11/08/l-enfant-bientot-prive-de-pere-et-mere_1787903_3232.html?xtmc=&xtcr=1

http://www.liberation.fr/societe/2012/11/18/incidents-lors-de-la-manif-de-civitas-

http://www.lepays.fr/actualite/2012/11/18/les-catholiques-integristes-mobilises-contre-le-mariage-gay

http://www.20minutes.fr/societe/1044332-guerre-manifestations-anti-mariage-gay-week-end