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Voando com a Asa Branca

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Quando seu Luiz saiu de casa por volta das cinco horas da manhã para o roçado, deixou sua esposa Rosinha e os quatro filhos ainda dormindo na velha casa de taipa perdida no meio da caasabranca
atinga. Com a enxada nas costas e a cabaça a tiracolo, andava a passos lentos e tristonhos rumo ao cumprimento de um ritual que o acompanhava desde tenra idade. No caminho, a cada árvore esturricada que passava pelos seus passos, seu Luiz lembrava o passado, um passado alegre e farto que ainda tinha lugar em suas lembranças; aquelas mesmas árvores marrons eram frondosas, de uma folhagem magnífica onde se podia sentar à sombra para admirar a paisagem dominada por um verdor que chega doía na vista de tão vivo. As lembranças iam e vinha ao sabor dos passos sobre o chão seco, pedregoso, que contrastava com o céu azul vibrante. Andava para frente, mas seus pensamentos desordenados iam para trás, para o verde da lavoura e o céu escuro de nuvens. Mais alguns passos e os olhos quase fechados pelo sol nascente contemplavam o seu roçado, uma ninharia que ainda cuidava de limpar por uma simples razão: não sabia fazer outra coisa.

Chegou ao meio dos poucos palmos de terra cultivados com milho e feijão e apoiou-se no cabo da enxada por alguns instantes para divisar o quadro todo. Ali parado, a terra ardendo tal qual uma fogueira de São João, sua mente só pensava em desgraça, mas, incapaz de traduzi-la em palavras certas, disse ao vento:

– Meu Deus, por que tamanha judiação?

Era tudo o que tinha para dizer. Assim, pôs-se trabalhar na firme esperança de que seu rosto não seria molhado apenas com suor. E trabalhou a manhã toda até a hora de voltar para almoçar com a família. Lá chegando encontrou todos aninhados à sua espera ao redor de uma velha mesa de madeira ornada com panelas velhas e pouco sortidas de alimento; apenas uns restos de caroços de feijão, farinha e água barrenta.

Rosinha o recebeu com o mesmo olhar tristonho, calejado pelo sol sertanejo, embora circundado de um rosto ainda jovem. Não tinham muito a dizer um ao outro. A comunicação era-lhes um fardo em razão da incapacidade que eles tinham para formular seus sentimentos e palavras. As crianças também não tinham muito a dizer a não ser que estavam com fome.

– E então, Luiz, alguma notícia? – perguntava Rosinha, mais com o olhar do que com as palavras.

Seu Luiz sentava-se à mesa e servia-se com o que tinha enquanto processava a pergunta e o olhar de Rosinha. Calava. Não tinha o que responder. Mas ao ver o sol bravio adentrar pelas frestas da janela e alcançar a cabeça de uma das crianças, ele disse, quase aos murmúrios:

– Que braseiro! Que fornalha! Nem um pé de prantação, Rosinha!

Rosinha compreendia perfeitamente aquelas palavras, que respondia com perfeição ao seu questionamento. Mas seu otimismo tinha que falar naquele momento, e foi quando ela disse:

– Calma, Luiz. Nesses dias chove.

– Se Deus quiser! Por falta dágua perdi meu gado e morreu de sede meu alazão.

Luiz parou por um instante e deixou que sua resposta fosse compreendida pela mulher. Sem receber palavra, pois em verdade Rosinha não tinha mais nenhuma para lhe dar, ele continuou se queixando:

– Até a asa branca, mulher, arribou daqui. Bateu asa e foi simbora desse sertão seco. Só a gente que vai ficando… – e comeu uma colherada de farinha do feijão salgado.

Aquela ideia da asa branca trouxe à mente de seu Luiz a lembrança de que muitos companheiros de agricultura estavam deixando aquela terra em direção da capital. O silêncio que tomava conta do lar sertanejo de seu Luiz o deixava pensar melhor naquela solução. Ir embora para a cidade para tentar a sorte e voltar assim que tivesse notícia de chuva. Olhou ao redor da casa e viu a saca de farinha escassear; logo as crianças passariam fome e ele não tinha de onde tirar para alimentá-las, não enquanto não caíssem pingos de água na sua roça.

No outro dia comunicou à Rosinha sua decisão. Ela nada disse para impedi-lo e só podia chorar baixinho. As crianças e ela iriam para a casa da mãe, enquanto seu Luiz tomava o primeiro caminhão para a Capital. Antes, vendeu alguns poucos bichos que ainda lhe restava, fechou a casa com uma tramela e começou a despedir-se das crianças. Um afago discreto na cabeça de cada um era o que tinha para dar como despedida. Antes de subir no caminhão que já o esperava, seu Luiz voltou-se para Rosinha. Ainda a deficiente comunicação os afastava, mas algo no ar dizia o que eles queriam. Um olhar penetrante transmitia os sentimentos e parecia ser o suficiente para descrevê-los naquele momento melancólico. Mas eis que seu Luiz produziu as palavras que queria para deixar com sua Rosinha:

– Adeus, Rosinha. Guarda contigo meu coração…

E seu Luiz subiu no caminhão, deixando para trás sua família sem saber quando e se voltaria a vê-los.

O caminhão rodou, rodou, até que seu Luiz e os outros retirantes alcançaram a cidade grande. Logo arranjaram emprego nas construções e assim podiam ocupar seus braços fortes. Mas de noite, longe, muitas léguas distante, sozinho num alojamento de obra, seu Luiz esperava a chuva cair, não ali naquela cidade banhada pela imensidão de água salgada do mar, mas no seu torrão, no seu pedaço de terra que lhe dava vida. Pensava daquele jeito torto, e a única coisa que o movia a permanecer ali era justamente a volta, a volta para o sertão. Juntaria dinheiro e, ao primeiro sinal de chuva, voltaria correndo para sua família e lançaria seus braços no trabalho na lavoura, agarrando-se ao solo que o viu nascer para nunca mais largar.

Em um sonho, numa das poucas vezes que houve de tê-los, sonhou com Rosinha. Viu a mulher com os filhos no sofrimento do sertão. Sonhou que a abraçava. Mas havia algo de pesadelo em tudo aquilo: a terra ainda estava seca e rachada pelo sol. Olhou para Rosinha, viu seus olhos verdes e animou-se. O verde que faltava na paisagem do sertão abundava nos olhos da sua triste Rosinha. No sonho conseguia dizer coisas bonitas, bonitas como os versos de um tocador de sanfona do seu chão, e foi nesse momento em que falou para Rosinha:

– Quando o verde dos teus olhos, se espalhar na plantação, eu te asseguro, não chore não, viu, que eu voltarei, meu coração. – e a abraçava com carinho.

O sorriso do sonho atravessou para a realidade e encontrou seu Luiz despertando para a labuta. Certo de que Deus não o haveria de abandoná-lo, de que não haveria de deixá-lo abandonar sua Rosinha e seus filhos, e antes de começar mais um dia de trabalho na construção, seu Luiz disse, desta vez não mais em sonho:

– Eu voltarei, viu, meu coração…