Os antropólogos nos ensinaram a enxergar as festas como rituais em que a coletividade se reúne para reavivar os laços sociais e produzir um estado de efervescência. As festas aproximam as pessoas, ensejam um “sentir junto” que garante e renova o equilíbrio social. De outro lado, elas proporcionam uma liberação temporária, uma suspensão das pressões e conformações do dia-a-dia do “mundo sério” do trabalho, da vida familiar, etc.. Portanto, quer para aproximar as pessoas, quer para aliviar a pressão da ordem social, as festas mostram-se como atividades importantes, essenciais, diria, à sociedade humana; são coisas antropologicamente sérias, por assim dizer.
Talvez o Carnatal não seja exatamente um ritual de simbolização da unidade, como outrora as celebrações coletivas das sociedades tradicionais. São outros, bem mais profanos e menos pedagógicos, os interesses da micareta natalense. Seria igualmente forçado extrair do Carnatal alguma espécie de manifestação da identidade potiguar – seja lá o que isso for – ou de qualquer outro tipo de identidade cultural. Nem de longe, o Carnatal é uma festa tradicional, folclórica, popular, isto é, não mantém nenhuma relação íntima com aspectos culturais de uma região, grupo ou história locais. Mas é certamente uma festa, moderna e nordestina.
Sua relação mais significativa é, sem dúvida, com o dinheiro, com o lucro e com o divertimento espontâneo e sem maiores conteúdos – o que, de modo algum, diminui o Carnatal enquanto festa e momento de gozo. Carnatal é cultura de massa, diversão enquanto serviço e consumo, festa como produto do mercado e um excelente negócio para alguns. Nem mais nem menos do que isso.
No entanto, se por um lado reconhecemos a legitimidade da micareta enquanto festa, diversão e gosto musical, por outro, a maneira como o Carnatal é organizado, ou melhor, imposto à cidade merece sim, questionamentos e críticas. Não se trata de críticas motivadas por ressentimento ou estética musical. As críticas devem mirar a concepção de cidade subjacente ao modelo de organização do Carnatal e aos efeitos práticos e as contradições da micareta. Portanto, as críticas devem manter como cerne a política, quer dizer, a discussão da vida comum da cidade, seus problemas, desafios e possibilidades. Trata-se, enfim, de perguntar qual a relação que a festa estabelece com a cidade, e, em particular, qual a contrapartida que o Carnatal oferece e lega a cidade. A meu ver, existe um profundo descompasso entre o que a cidade disponibiliza para a Destaque e sua festa e o que esta “retribui” para a primeira.
Ao contrário de outras cidades que contam com grandes festas privadas anuais, Natal não experimentou nenhuma reestruturação ou embelezamento urbano em razão do Carnatal. Muitas festas ao redor do país utilizam parte de seus recursos e lucros, juntamente com a ação do poder público, para revitalizar centros históricos ou construir equipamentos urbanos destinados à realização de eventos culturais – veja o caso de Mossoró ou da Oktoberfest em Blumenau-SC. A micareta natalense, por sua vez, restringe-se a uma estrutura temporária e descartável que em nada contribui para cidade. Muito pelo contrário, a “estrutura” urbana do Carnatal fecha e obstrui ruas, deixando o já complicado trânsito da cidade ainda mais intricado e vagaroso. Em termos de urbanização e preocupação com a vida citadina, o Carnatal é, nos moldes em que é atualmente organizado e imposto, um flagrante desrespeito ao direito à cidade.
Em continuidade, não observamos no Carnatal nenhuma contrapartida efetiva e direta quanto aos recursos públicos recebidos. Ora, várias festas que recebem esses incentivos públicos, como a Festa do Peão Boiadeiro, em Barretos-SP, revertem parte dos lucros em obras sociais; criação de creches, casas de apoio, asilos etc.. O Carnatal e a Destaque são, contudo, bastante tímidos nessa área de atuação, com pouco ou nenhum compromisso com o desenvolvimento social da cidade.
Outro ponto a ser destacado diz respeito ao engajamento popular na organização da micareta. Enquanto nos carnavais – inclusive no extremamente lucrativo carnaval carioca – ou blocos de afoxé, frevo e maracatu se tem uma participação popular (da comunidade) na organização das festas e dos blocos, produzindo, graças a tal engajamento, sociabilidades e sentimentos de identificação, a organização do Carnatal é realizada unicamente por empresas e profissionais publicitários e de marketing. Ou seja, não envolve em sua construção e organização a cidade e seus habitantes. É um empreendimento concentrador, exclusivamente comercial e profissional.
Além desses aspectos, os quais nos permitem questionar que legado deixa o Carnatal para a vida da cidade e na cidade, poderíamos, ainda, mencionar as diversas violações ou transtornos criados por tal festa. Por exemplo, a privatização temporária e anual do espaço público, o prejuízo do direito de ir e vir pelos desvios e engarrafamentos gerados – cabe aqui perguntar por aqueles que esperneiam quando estudantes paralisam o trânsito por causa de protestos e reivindicações e, nesse momento, calam-se contra o Carnatal e sua alegre folia; a quebra da lei do silêncio, a utilização do poder público (segurança, apoios, etc.) para o privado, entre outras infrações.
Diante da ausência de qualquer legado ou contrapartida para a cidade, criticar o Carnatal é mais do que uma tarefa política que os setores comprometidos com uma Natal melhor devem abraçar. É chegado o momento de um debate coletivo e público sobre a real pertinência e contribuição da micareta para a vida da cidade. É preciso romper o consenso cúmplice e tácito, da imprensa e autoridades públicas, acerca das arbitrariedades e transtornos causados pelo Carnatal.
Estabelecer um debate que coloque em xeque a razão de ser, a necessidade de transformação e o legado da micareta potiguar. Um debate que critique, sobretudo, o modelo privativista de imposição da micareta à cidade; pois, se observamos bem, a lógica de imposição e privatização do espaço público promovida pelo Carnatal guarda um íntimo parentesco com a lógica de ocupação dos hotéis da Via Costeira e as desapropriações realizadas pelas obras da Copa do Mundo. Ora, o que está em jogo é uma concepção e projeto de cidade. Criticar o Carnatal, os empresários do setor imobiliário e hoteleiro e a Copa do Mundo significa uma e só coisa: combater uma concepção excludente, predatória e autoritária de cidade.
Por fim, depois de décadas de Carnatal, o único legado do qual podemos falar concretamente até aqui é aquele que encheu os bolsos de alguns poucos grupos de empresários. Com o Carnatal, a cidade nada ganhou de efetivo e duradouro.