Os pequenos contos a seguir, embora romanceados, são baseados em fatos e situações reais relatadas por ex-presos políticos da ditadura militar brasileira de 1964.
Vermelhos
Mão na cabeça, vagabundo! – Gritou o policial.
Afonso se adiantou. Colocou as mãos na cabeça e se deitou tão logo foi atingido por uma coronhada. A sociedade sentia o recrudescimento do regime, brinde singelo do malsinado do AI-5.
Em uma rigorosa revista em seu apartamento, apreenderam vários livros suspeitos. Um deles, “Os princípios do cubismo”, foi a derradeira e inconteste prova de sua subversão. O livro era de sua irmã mais velha, uma artista plástica que há três anos se mudara para o interior da França para fazer doutorado. Para os militares, estava mais do que óbvio que se tratava de um libelo sobre a revolucionária ilha caribenha. Todos os demais apreendidos eram livros técnicos, de engenharia e ciências exatas em geral, área na qual Afonso era graduando.
Mas isso também não interessava. Tinham a capa vermelha.
Foragido
Ao chegar às instalações do DOPS, Afonso foi interrogado por quatro policiais. Não se delongaram até iniciarem a tortura. Insistiam para que Afonso entregasse os seus companheiros. Queriam nomes. Mas Afonso não tinha companheiros, não no sentido em que os militares pensavam. Deitado no chão, foi alvo de algumas dezenas de pontapés até sentir seu rosto pressionado pela sola de um coturno.
– Quem é o seu líder?! Qual o nome do seu líder?!, vociferavam.
Afonso limitava-se a repetir que não sabia nada de líder algum até sentir um chute na costela. Havia chegado ao limite.
– Juca Brito! – gritou. Foi o primeiro nome que, aleatoriamente, lhe veio à mente, enquanto as grossas paredes do DOPS abafavam sua voz esganiçada e quase sem forças.
As buscas por Juca Brito duraram até a redemocratização. Há quem diga que o procuram até hoje.
Grécia antiga
Ensaiava-se a peça Antígona em certa tarde, tragédia grega de autoria de Sófocles escrita por meio de 442 a.C. Trata-se de um clássico onde, em seu mais emblemático momento, Antígona, uma audaciosa jovem tebana, questiona a autoridade de Creonte, rei de Tebas, em negar ao seu irmão um funeral de acordo com os tradicionais ritos fúnebres da época.
No meio dos ensaios, tropas militares entram abruptamente no recinto dando voz de prisão a todos. Uma peça onde uma jovem, mulher e civil, questionava o poder decisório das autoridades constituídas era subversiva demais até para ser ensaiada.
Eis que o capitão, após ter rendido todos os presentes, solta:
– Quem é o autor da peça?!
O mais remoto dos sepulcros seria mais barulhento que a sala após tal pergunta, que voltou a ser repetida, seguida de um novo e constrangedor silêncio. Um dos atores conseguiu superar o medo e respondeu, simples e objetivamente:
– Sófocles, senhor.
– E onde esse filho da puta está?!
Os atores entreolharam-se. A situação era cômica, mas quem se atreveria a rir?
A obstinação do capitão em encarcerar o teatrólogo grego, falecido há aproximadamente 1600 anos, era mais do que admirável, mas não foi suficiente para sensibilizar os atores e atrizes presentes. Ninguém estava disposto a se submeter ao humor dos militares.
Acabou que Sófocles entrou no time de foragidos e não encontrados. O mesmo de Juca Brito.
Habeas-corpus
Afonso enfim fora solto. Algumas semanas encarcerado o fizeram entender que a ditadura não estava de brincadeira. Tão logo saiu da prisão, recorreu a um advogado que impetrou novo habeas-corpus em seu favor, agora de natureza preventiva. Afonso acreditou que assim estaria a salvo das corriqueiras prisões arbitrárias promovidas pelos militares que, para satisfazer suas lascívias, costumavam prender indiscriminadamente. Bastava a mínima suspeita de subversão, em toda a subjetividade do termo.
Sentado na calçada logo após a soltura, um jipe do exército lhe para à frente. Soldados saem, reconhecendo-o por suas feições. Eram os mesmos que o haviam abordado em seu apartamento.
Desceram do veículo dando imediata voz de prisão. Afonso não hesitou. Triunfante, sacou o habeas-corpus do bolso. Certamente desconheciam sua existência, caso contrário não o teriam abordado. Falou, com uma honesta e vitoriosa petulância: “desculpa aí, mas tenho um habeas-corpus preventivo”, erguendo o salvo-conduto. A vontade era a de esfregá-lo nas caras dos seus algozes.
– E eu tenho isso! – respondeu enfaticamente um dos soldados, mostrando-lhe, com gentileza, a metralhadora semiautomática atada ao pescoço.
Por mais uma semana Afonso teve que se contentar com o insosso feijão servido na cadeia. “Ei, habeas-corpus, hora do almoço”, anunciavam-lhe os carcereiros. Ao menos dessa vez tinha um nome, pensava.
Vasco X Botafogo
Em certo momento, as atenções no pau-de-arara onde estava Afonso se dividiam com o singelo radinho de pilha situado próximo à temida “cadeira do dragão”. Era a final do Campeonato Carioca de 1970, onde jogavam Vasco e Botafogo. Dessa vez em especial os procedimentos foram mais amenos: restringiram-se ao intervalo do jogo e às eventuais paralisações mais demoradas do árbitro.
Desnorteado pelos espancamentos que sofrera, Afonso, um inveterado vascaíno, esforçava-se ao máximo para escutar o locutor. Mas os “telefones” que haviam lhe aplicado o deixariam zonzo demais para compreender o que saía dos autofalantes. Ainda, estava de cabeça para baixo, pendurado sob os punhos e tornozelos e sentindo o sangue escorrer pelos ouvidos.
Balbuciando, elevou a voz ao máximo possível para perguntar quanto estava o jogo. Repetiu até que um dos torturadores lhe respondesse. Ao saber que o Vasco estava vencendo por 2 a 1, já nos acréscimos, ensaiou um involuntário sorriso, tímido, porém de notória satisfação. O suficiente para que fosse alvo de uma nova sessão de espancamentos.
Não sabia que eram botafoguenses. Se soubesse, porém, não teria apenas sorrido, mas gritado. Não perderia a oportunidade de, respondendo à altura, gozar de seus algozes. Não mesmo. Era única forma que, naquele momento, tinha para revidar o calvário ao qual era submetido. E que revide.