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O descaso ao meu direito de ir e vir

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Por Dr. Hélcio Maranhão*,

O título de uma notícia enviada por um leitor à Carta Potiguar me chamou atenção: “Cidade torna ilegal a atividade de flanelinha”. Curioso, rapidamente fui ler a matéria a fim de saber melhor os detalhes dessa história. Para minha surpresa, a prefeitura da cidade de Nova Hamburgo, no Rio Grande do Sul, teve a coragem de aprovar um diploma legislativo que proíbe a atuação dos “flanelinhas”, por entender que as ruas são espécies de bens públicos e, portanto, não podem ser “privatizadas”. Eufórico, percebi que algumas das minhas idéias são compartilhadas pelos gaúchos. Por outro lado, para minha decepção, a maioria dos comentários postos pelos potiguares na matéria fazia referência a certa tolerância à atividade, chegando, alguns, a considerar absurda tal resolução. As justificativas apontadas são várias. Vamos às mais impressionantes.

Um dos meus conterrâneos repudia veementemente o comentário de outro, por este considerar uma extorsão ter que pagar, sob “ameaça”, um valor para deixar seu carro em via pública. E ainda, diante a sua indignação com o comentário do colega, diz ter uma melhor saída em momentos em que é pressionado por gorjeta, revelando-a como uma solução: “veião, tenho não”. Ora, até agora o seu jargão pode ter funcionado (o que não lhe garante que funcione para a vida eterna), porém, é interessante lembrar a esse indivíduo que nem todo mundo tem seu jeito “descolado” de ser e tampouco se tem a obrigação de assim o ser. Afinal, tenho o direito de parar em local público, desde que permitido, onde bem quiser e entenda, sem a necessidade de ser simpático a ninguém. Não acredito que seu “veião, tenho não” seja dito no momento em que ele estaciona seu carro. Será que ele tem a coragem disso? Ou será que ele diz: “dá uma olhadinha aí, que, da próxima vez, eu te dou algo, beleza?”

Outro aponta crime contra o direito de ir e vir das pessoas, já que esses “trabalhadores” seriam retirados das ruas. Em nenhum momento, a notícia se refere a isso, mas, sim, que a atividade de flanelinha seria combatida pelo poder público. O cidadão continua com o seu direito de ir e vir. Agora, sem me obrigar a fazer um pacto prévio de que ele vai vigiar meu automóvel. Sem precisar assobiar para mim por mil vezes do outro lado da rua, toda vez que desço do carro, a fim de criar uma cumplicidade, caso eu responda com um olhar ou o que for, a qual eu não quero e repudio. Sem precisar me entregar um pedaço de cartolina ou até uma cópia plastificada com o valor a ser pago. Sem contar que ainda tenho que guardar com segurança tal cópia a fim de devolvê-la na íntegra.

Outro comentador se acha mais esperto porque simplesmente prefere deixar de tomar duas ou três cervejas a mais na noite e assim assegurar o valor solicitado a ter seu carro roubado, arranhado ou depredado. Que bela imaginação! Primeiro, eu tenho que me preocupar em guardar o dinheiro do “pastorador”, depois eu bebo com o cuidado de tomar menos cerveja, não porque não se pode beber e dirigir, afinal a “lei seca” e a tolerância zero estão aí, mas sim porque dessa forma eu economizo a gorjeta da volta. Raciocínio, no mínimo, distorcido.

São esses e outros exemplos que fazem com que nossos governantes e legisladores municipais se sintam à vontade em pensar na regularização da “profissão” de flanelinha, como já foi até aventado. Sem contar que, no Brasil, chega-se ao absurdo de se tentar legislar sobre o percentual de gorjeta de garçons em bares, restaurantes e similares. Algo que deveria ser espontâneo, de acordo com a satisfação do cliente ao serviço prestado, passa a ser lei, obrigação, como se não bastasse aquelas que já temos. Somos todos coniventes e permissivos. Ou, caso não sejamos, não conhecemos os nossos direitos, apesar de reclamarmos de pagar as maiores taxas tributárias no mundo.

E pagamos para termos o benefício assegurado de ir e vir. De termos as ruas limpas, pedestres e motoristas em harmonia, veículos circulando bem, estradas sem buracos, faixas de pedestres claras, visíveis, previamente sinalizadas, semáforos que a gente possa passar na indicação luminosa verde. Mas, na nossa cidade, somos impedidos disso. Vejamos os porquês.

As ruas estão sujas, os pedestres não conseguem andar nas calçadas (quem dirá os portadores de necessidades especiais?), quando existem, esburacadas e desniveladas, daí, ganham as faixas dos carros, junto a corredores e ciclistas, arriscando a vida, ao acreditarem na eficiência dos motoristas, como algo unicamente dependente destes, sem contar com a qualidade do asfalto, a iluminação do logradouro, a falta de sinalização e tantos outros.

Os semáforos estão cheios de pedintes, alguns eu os acompanhei crescer, desde ainda crianças, hoje já jovens mal cuidados, ainda nos mesmos pontos. Sem os dentes que a ausência de políticas de saúde bucal os retirou, apontando para a barriga como sinal de fome, ao mesmo tempo em que estendem a mão em atitude de súplica. Que poder público é esse que não enxerga o que eu enxergo há anos? Que poder publico é esse que deixa à deriva tantas vidas que deveriam estar sob seu cuidado, proteção e orientação? Não cabe a mim a solução desses problemas. Minha esmola não vai retirá-lo de lá. Pelo contrário. Vai mantê-lo. Quem se habilitou a um cargo político tem que assumir a suas obrigações e não eu. Eu faço a minha parte. Pago meus tributos em dia e cumpro com minhas obrigações sociais. Mas, todos os dias, a agressão continua.

Chamo “agressão”, porque assim considero, em um país que se diz, dentre os emergentes, um dos mais resistentes às sucessivas crises internacionais e economicamente favoráveis a investimentos, a ausência do Estado como tal. Esses indivíduos podem até não estar com a mesma fome de antes, afinal os programas sociais mais recentes vieram abrandar boa parte disso, mas estão ainda sem educação e sem escolas. Sem um processo que verdadeiramente lhes tirem dessa condição e que passa efetivamente pelo conhecimento.  Nessas políticas, o Brasil tem falhado há décadas.

Vejo meu vidro do carro ser invadido por limpadores de parabrisas, cheios de água suja, mesmo que eu antecipadamente diga não e faça gestos que representam tal negação. O carro é meu, é minha propriedade e não cabe a ninguém limpá-lo, caso eu não queira. Mesmo vigilante, quantas e quantas vezes já tive a abordagem pelo vidro traseiro, porque o mecanismo de ir pela frente já está muito manjado. E, se nego a limpeza, o que faço sempre, tenho meu vidro completamente molhado e sujo, sem contar com o carro manchado. Repito, o carro é minha propriedade. É como minha casa! Não quero que ninguém chegue limpando a minha vidraça sem minha permissão. Sem contar que sou ameaçado por caras, bocas e palavrões por minha negativa. Acho que tenho que aprender o “veião, tenho não”, para ver se funciona. Mesmo correndo riscos a minha segurança.

Quem já não perdeu o sinal verde do semáforo porque tem que aguardar a passagem ou desviar de pedintes, que se põem sem o menor constrangimento no meio da rua e dos carros, ou limpadores, a fim de esperá-los terminar a limpeza de seu vidro ou do motorista da frente, para poder seguir? E o trânsito que já está horrível, estressante, se torna ainda mais caótico e irritante. E mais uma vez, eu me atraso por perder o sinal e por ter que me preocupar com a vigilância daqueles que me abordarão.

Como se não bastasse, os órgãos públicos liberam a construção de baias de estacionamento minúsculas a escolas privadas e estabelecimentos comerciais, sem recuo adequado, em plena avenida de grande fluxo como a Prudente de Morais, trazendo ainda mais congestionamento e filas duplas em horários de pico. Sem contar que essa mesma escola já está em grande ampliação do número de sala de aulas, em edificação rente à Rua Romualdo Galvão, só distanciando-se desta pela calçada. Resta saber se foi programado estacionamento proporcional à empreitada, pois o já existente nem de longe atende a demanda atual.

Não tem outra: tudo isso se chama ausência do poder público. Estou certo da importância da solidariedade e tento cumprir meu papel através de minhas atividades profissionais e sociais. Mas, além disso, quero ter o meu direito de ir e vir assegurado. E assegurado porque eu sou um cidadão cumpridor de meus deveres.

É lamentável quando um governante vai a TV e diz que os seus três primeiros dos quatro anos de gestão foram voltados para as atividades e ações sociais. E, por isso, suas obras não são vistas tão claramente pela população, porque não são “estruturantes”. Mais lamentável é quando diz que o povo não estava acostumado a esse tipo de gestão, inovadora, criativa, “social”.  Por este motivo, a avaliação de sua administração não é satisfatória. Se isso foi prioritário, eu me pergunto, onde estão essas ações inovadoras? O que mudou? Quem se beneficiou? Qual a parcela? Qual o alcance? Porque eu vejo a mesmice. Os canteiros continuam cheios de gente. Não mais de flores, como tal governante tentou justificar essa ausência e descuido. Mas, confesso, se ainda houvesse flores, não adiantaria muito porque nossa visão está tão ocupada em se livrar dos buracos das ruas, que as coitadas das flores, se estivessem nos canteiros, seriam desprezadas por nossos olhares.

Não é à toa que perdi, em menos de 4 meses, dois pneus completamente novos com rasgões. As borracharias estão agradecendo à prefeitura, porque nunca lucraram tanto. Isso é fato comprovado em reportagem feita por alunos de jornalismo, aos quais me incluo, para a disciplina de Comunicação Política da UFRN. Enquanto isso, eu terei que pagar por outros dois novos pneus, além do meu IPVA anual, DPVAT e tantas outras taxas para continuar dirigindo nessas ruas mal conservadas. Acho mesmo que deveria ter isenção pelos prejuízos a mim causados. Sem contar nas multas que ainda recebemos por estarmos dirigindo em um tráfego louco, onde os guardas de trânsito ou “amarelinhos” servem mais para multar do que para orientar. Onde eles estão, pode crer, o trânsito às vezes fica pior. Já percebeu?

E, maiormente, estamos em uma prefeitura literalmente dita verde. É lógico que o “verde” não significa flores, mas subestimar a beleza que elas trazem é tentar desviar o olhar dos espectadores da sujeira e do descuido que a cidade se encontra, além de considerá-los tolos demais.

Ainda não entendi por que no Carnatal existiam tantas cercas de arame nos canteiros protegendo o nada. Pelo contrário, só dificultou a circulação das pessoas e trouxe inúmeros transtornos àquelas que estavam dentro e fora dos blocos. É tanto que já no segundo dia, algumas das cercas foram retiradas. O que é isso? Falta de planejamento. Liberar o Carnatal para acontecer da forma como aconteceu em 2011 ou é ter uma visão muito limitada das coisas e, portanto, falta de capacidade, ou muito compromisso com a folia, jamais com os foliões. As crateras na avenida, o meio-fio, a dimensão dos trios, o aperto, eram indicativos de tumulto, acidentes, torções em tornozelos e pés, quedas com possíveis traumatismos, que, não sei, por sorte, não aconteceram em demasia (caberia uma melhor análise). Sem contar com paradas de ônibus que foram retiradas do percurso e até hoje não recuperadas, deixando o passageiro a mercê das intempéries do tempo.

Triste é a constatação que é essa a cidade que se prepara para a Copa do Mundo. As obras existirão. Tenho poucas dúvidas sobre isso. O dinheiro parece estar assegurado e os interesses são muitos. Só sei que não serão como estavam previamente no papel. Exemplo disso, o projeto original da Arena das Dunas. De tão megalomaníaco, a princípio, com hotéis, lagos, pontes, avenidas, centros administrativos do município e do Estado, restou apenas o estádio de futebol. O que parecia já previsto, pois nas palavras de um político, na época, primeiro era aprovar o nome de Natal para a Copa. Depois, era ver o que se fazia com os projetos apresentados. Só que foram pagos milhões para uma empresa estrangeira pela realização dos projetos. E depois vieram as desculpas já conhecidas para seu enxugamento. Bela visão de planejamento! Vamos aguardar agora as obras de mobilidade urbana!

Percebe-se, portanto, que os nossos problemas vão além de banir ou não a atividade de flanelinhas ou de quem quer que seja. Todo cidadão tem o direito a ter um trabalho e que dele retire o seu sustento e de sua família. Desde que dignamente. No entanto, o uso do espaço público deve ser assegurado de forma democrática, sem tendência para qualquer dos lados por força do destino, situação financeira, social ou política e a fim de garantir uma convivência segura, harmoniosa e respeitosa entre os indivíduos.  Para isso, o conjunto não funciona sem cada parte fazer o seu papel.

Natal, Rio Grande do Norte, a quem entregamos o nosso destino? Ao bel prazer da conveniência política, da falta de um processo efetivo de educação, do desprezo à conscientização dos cidadãos, do voto fácil, das escolhas insensatas, da manutenção de políticas populistas, da manipulação da opinião pública, das ilusões perdidas.

*Mestre em Pediatria e Doutor em Ciências Aplicadas à Pediatria pela Universidade Federal de São Paulo.

Professor Associado do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Atua em ensino, pesquisa e extensão nas áreas de Gastroenterologia e Nutrologia Pediátricas, com interesse atual nas linhas de humanização da Atenção à Saúde da Criança, Medicina e Arte e uso da fotografia como estratégia de acolhimento.

É graduando em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.