Os fatos que lhes narrarei saltaram do baú das velhas lembranças quando findei a mudança para a casa nova, um sóbrio palacete de um pavimento que passou a fazer parte do meu patrimônio depois de anos de trabalho árduo.
Morava eu num condomínio de arrabalde cujos prédios, cercados por altos muros e cerca elétrica, não ultrapassavam os quatro andares. Elevador não existia; eram as escadas as leais companheiras diárias de panturrilhas e de um semblante cansado depois de um dia de trabalho e do trânsito de uma hora que sempre me separava do aconchego do meu lar ainda por mobiliar. Abrir janelas era o ato inicial da chegada. Era o deixar entrar o vento refrigerado daquele recanto cercado de matas e terrenos destinados à especulação imobiliária, ainda afastado do ar carregado do centro da cidade. Depois era despir-se, tomando sempre o cuidado de não se deixar flagrar por algum vizinho curioso ou desavisado, colocar o calção mais surrado do guarda-roupa e relaxar.
Sentei-me a mesa e pensei em jantar. A geladeira estava pobre, e nada do que tinha ali me atraiu. No fogão, idem.
– Mais tarde como alguma coisa.
Dirigi-me até a varanda, de onde passei a observar o movimento dos condôminos cumprindo o mesmo ritual de todos os dias na doce companhia de uma agradável brisa noturna. As luzes estavam todas acesas e a vida fervilhava em cada unidade habitacional. Jantares eram servidos, conversas amenas eram travadas, crianças corriam e gritavam, e lá embaixo, num banquinho de praça, alguns adolescentes davam seus primeiros passos no tortuoso mundo do coração. Olhei para eles e sorri de satisfação ao lembrar como foram bons aqueles tempos.
Devo dizer que o meu apartamento era no último andar, de modo que tinha uma visão privilegiada de todos os meus vizinhos de frente, e ainda com outra vantagem: a de estar invisível aos olhos dos que estavam abaixo. Pelo menos era o que eu imaginava, já que nunca me postei num andar inferior para saber até onde a visão alcançava. Não importava. Preferi ficar com essa suposição, imaginando que podia ver sem ser visto.
Mesmo olhando para baixo, notei que na varanda da frente alguém parecia fazer a mesma coisa que eu.
Uma mulher debruçada no parapeito, a palma da mão no queixo, os dedos na bochecha e o rosto levemente inclinado, admirava o mesmo grupo de jovens postados no banco de praça. Uma mulher mais velha, bem mais velha, aliás. Quase uma senhora. Mirei na sua figura. Era simples, sem caracteres marcantes, e trajava roupas aparentemente de trabalho. Uma vendedora de loja de eletrodomésticos ou algo assim. Foi o que pensei. Era minha vizinha de frente, mas a distância de uma varanda para outra, além do calçamento que separavam nossos blocos, era suficiente apenas para me deixar ver sua figura na varanda e um pedaço da sala. Sim, uma vendedora de loja.
Eu não era vendedor de loja, o que nos afastava, mas tínhamos algo em comum, pelo menos naquele rápido momento: olhávamos o mesmo cenário. Eu, não muito distante do calendário daquela realidade doce da adolescência; ela, certamente mais distante em anos e em boas lembranças. Como sei? Deduzi pelo seu semblante tristonho, quase melancólico.
Deveria ter saudade da adolescência por não tê-la aproveitado dignamente. Fiquei a imaginar os motivos; timidez, severidade dos pais, desinteresse… tudo passou pela minha cabeça, mas conclui que fosse o que fosse, estava arrependida e, por isso, triste.
Olhei-a mais atentamente e vi por detrás de seus costados a figura de uma criança correndo só de cueca. Ela virou-se. Constatando que nada estava errado, e que a criança – seu filho, certamente – estava apenas sendo criança, voltou novamente a atenção para os jovens adolescentes.
Vi, e posso atestar com certeza, que ela suspirou. Digo mais: foi de saudade. Como sei disso? Vi seu peito subir e descer numa velocidade diferente, lenta, mas ritmada no compasso de um coração saudoso, fazendo subir ligeiramente os olhos para algum lugar no passado. A imagem dos adolescentes na flor da idade e no desabrochar da maturidade mexia com aquela mulher. Talvez as implicações do seu trabalho ou o atraso de uma conta de energia não perturbassem tanto seus pensamentos nem revolvessem outras lembranças enevoadas pelo correr dos dias, mas aquela imagem, sim, a punha em melancolia.
Mais alguns segundos e comecei a impacientar-me com a fissura com que ela olhava e olhava, com tanta determinação que sequer deu-se ao trabalho de notar que eu, impertinente, bem ali na sua frente, estava a observá-la e a investigar seus segredos mais íntimos, revelados por simples gestos de se encostar a um parapeito de varanda, fitar por alguns segundos um grupo de jovens e suspirar longamente, enquanto seu filho – creio que era seu filho – corria de cueca pela casa.
– Imagens tão simplórias e tanta coisa por trás! – pensei.
Mas eis que por um momento desviei o olhar para um carro que entrava no condomínio fazendo muito barulho. A quebra do silencio da minha contemplação pelo ruído do motor me enervou. Franzi o cenho e repreendi silenciosamente aquele insensível. Uma fração de segundos, átimos insignificantes, e retornei a atenção para a mulher da varanda da frente. Convicto de que ainda era eu a observá-la impunemente, dei de cara com o seu olhar na minha direção. Meus olhos encontraram com os dela, ainda saudosos e tristonhos. Um ar de cumplicidade banhou o ar. Quase esbocei um sorriso de gentileza para com minha vizinha da frente, mas não deu tempo. Ela sorriu primeiro, e foi quando me senti envergonhado. Imaginei o que ela poderia estar pensando ao meu respeito ao me flagrar com uma carranca. A julgar pelo diagnóstico pessimista que tracei depois de observá-la por alguns segundos, conclui que ela não poderia fazer diferente em relação a mim.
Seu sorriso parecia-me ao mesmo tempo de conivência e piedade. Naquele rápido momento em que me viu observar a chegada de um carro com ar sombrio estampado no rosto, poderia facilmente me ter por um infeliz, mal humorado ou coisa pior, despertando o compadecimento por um jovem solitário. Estaria ela a esquadrinhar aspectos de minha vida que nem eu mesmo poderia conceber. E agora? Como desfazer esta impressão? Baixei a cabeça e fiquei a matutar uma saída. Tinha que ser rápida, presidida pelos segundos. Falar era impossível. Justificar menos ainda. Enquanto pensava, ela virou-se e entrou no apartamento, deixando apenas uma varanda vazia, que contemplei abobalhado quando resolvi sorrir-lhe de volta.
Sorri para o vento, ofertando para o nada uma imagem que tencionava desvanecer uma péssima impressão na imaginação de alguém que eu traçara todo um perfil melancólico com base apenas em seu comportamento por alguns ligeiros instantes. Deixei de lado este pequeno episódio e voltei a olhar para os adolescentes que já se encaminhavam para suas casas, deixando no ar somente a voz do vento e das cigarras. Neste momento senti fome e resolvi preparar um jantar.
Antes de sair da varanda, vi no andar mais baixo do mesmo prédio da frente uma pessoa a me observar. Não pude precisar por quanto tempo, nem se flagrou meu sorriso bobo para ninguém, nem mesmo se tinha notado aquele silencioso diálogo com a mulher da varanda da frente. Inquietei-me e virei sem dar-lhe cabimento, movido pela certeza de que um momento, um mísero momento, um instante fugaz de distração, é demasiadamente perigoso. Perigoso porque é capaz de dizer quem somos, mas principalmente quem não somos.
Deste dia em diante até quando morei naquele condomínio, não cheguei perto da varanda antes de me certificar que ninguém estava na vizinhança a xeretar minhas reações mais sem sentido a fim de adentrar sem permissão nos mistérios do meu espírito.
Hoje, olho ao redor e noto surpreso que minha casa nova não tem varanda e as janelas se abrem para os muros que cercam a construção, à exceção da do meu quarto, cuja paisagem que me aparece é a de um belo jambeiro que me oferecerá doces jambos no outono, e uma reconfortante segurança durante todo o ano.