Neste início do ano, se houve um protagonista nas principais manchetes que ocuparam diariamente a opinião pública e a imprensa, este protagonista foi a Polícia Militar. A instituição responsável pelo controle da violência esteve envolvida diretamente em vários – e da maneira controversa – dos últimos acontecimentos de destaque nacional; conflito com estudantes da USP, Operação da Cracolândia, a reintegração de posse em Pinheirinhos e, por último, a dita greve da PM na Bahia. Junto a estes de maior destaque e apelo, quer pela dimensão ou pelo apelo regional, outros episódios menos destacados somam-se: como os embates e a repressão da PM contra os manifestantes e estudantes que, no Piauí, Recife e no Espírito Santo, protestaram contra o aumento das passagens de ônibus.
Esses acontecimentos razoavelmente dispersos do ponto de vista geográfico e das questões políticas e sociais implicadas possuem alguns componentes em comum. Todos eles, em alguma medida, redundaram em críticas à arbitrariedade policial quanto ao excesso ou no uso ilegal da força por parte da PM ou alguns de seus integrantes. Os episódios e as críticas suscitadas instigam e colocam na ordem do dia uma avaliação crítica acerca do modo pelo qual o Estado e seus aparelhos de segurança e repressão se valem do monopólio da violência. Mais ainda: eles são sintomáticos, espelham alguns dos traços típicos do padrão de reação oficial do Estado diante de problemas de conflito social, marginalidade urbana e questionamentos e protestos políticos. Em particular, aquele padrão de resposta mediado pelo órgão de linha de frente nesses conflitos, a polícia.
Vejamos. No caso da agressão e destempero de um policial contra um aluno negro da USP – vídeo aqui -, se aventou a possibilidade duma motivação racista, pois dentre os alunos presentes no episódio o “descontrole emocional” e a suspeita do policial se insurgiram justamente contra estudante negro, quando este “ousou”, digamos, discutir com a autoridade. Em espaços sociais privilegiados, do ponto de vista econômico e da cultura, como é o caso da USP, um lugar de “trabalho intelectual”, os negros são tratados e percebidos como intrusos e “estranhos nos ninho”. O comportamento discriminatório das forças da ordem é notório e histórico no Brasil, mas também em outros países, e destacado, inclusive, em relatórios nacionais e internacionais sobre o perfil racial das vítimas da brutalidade policial assim como apontado relatórios internos conduzidos por PM’s acerca dos “grupos alvo” priorizados nas abordagens – aqui.
As operações na Cracolândia e a reintegração de posse em Pinheirinhos, por sua vez, são contundentes em dois aspectos quanto ao tratamento do braço armado do Estado dispensado às populações mais vulneráveis e indefesas – no caso os dependentes de crack e os párias sem teto de Pinheirinhos. Primeiro, evidencia como no tratamento dos problemas sociais (moradia) e de saúde pública (dependência química) a prática da violência – leia-se tiros de borracha e gás lacrimogêneo aqui – a prática da violência e da criminalização se sobrepõe a prática do diálogo e da politização do problema.
Em segundo lugar, estes dois episódios em questão traduzem uma prática rotineira e historicamente enraizada nos aparelhos de repressão e forças policiais em sociedades desiguais como a brasileira; a perseguição aos mais pobres e estigmatizados socialmente. Ao longa da história do Brasil, a pouca efetividade de conflitos externos contra países e povos estrangeiros levou a que, desde sua formação, a tarefa primordial das forças policiais se dirigisse no sentido da repressão de inimigos internos e rebeliões populares internas, dedicando mais, portanto, a defesa das classes dominantes e proprietárias contra as maiorias despossuídas e seus levantes virtuais do que a defesa e patrulhamento das fronteiras. Assim, a proteção e espelhamento do temor e interesses das classes dominantes, fizeram com que, ao sinal do menor perigo, o uso desproporcional da força fosse quase sempre a primeira alternativa do exército, das milícias e da polícia contra revoltas e ameaças dos mais pobres e despossuídos.
Face aos objetivos autorizados legalmente, face às ordens de cima, aos olhos indiferentes dos aparelhos policiais, essas pessoas foram e continuam a ser apenas obstáculos a serem removidos, entulho e refugo humano cujo trato não pode ser outro que não o da imposição, da força e do autoritarismo. Jamais o trato da palavra e do diálogo. Ali não há pessoas, se lida com subgente, ralé, desprovida das qualidades para valer-se de direitos, como integridade e dignidade. Em casos como a de Pinheirinhos e da Cracolândia, a polícia se mostra em uma de suas faces históricas assumidas no Brasil, uma espécie de guarda da fronteira social, responsável em manter sob distância os “bem de vida”, os proprietários e os cidadãos respeitáveis das “classes perigosas” de vagabundos, viciados e invasores.
Por último, a greve dos policiais na Bahia. Com a paralisação de parte da corporação, movida por motivos justos e legítimos, frise-se, eclodiu na capital baiana e nas cidades do interior uma série de eventos desestabilizadores da ordem pública; aumento abrupto do número de homicídios, sequestros de ônibus, saques, depredações, ataques à tiro. Quer seja pela ação direta de alguns PM’s, quer seja indiretamente pela omissão, intransigência ou má fé, o fato é que parte dos amotinados policiais baianos valeram-se de tais circunstâncias como instrumentos de pressão e promoção do terror e medo generalizado como estratégia pra atingir os seus objetivos de paralisação. No que pese toda a importante discussão sobre a legitimidade ou não da greve e a necessidade da desmilitarização da polícia, esse episódio em questão revela como vigora e atua no interior da corporação, grupos de PM’s dispostos a lançar mão de práticas ilegais.
É essa disposição de se julgar o árbitro soberano que decide ora pela lei, ora pela exceção, que faz com que o recurso a práticas ilegais como a ação de grupo de extermínios, prisões arbitrárias, tortura, extorsão ou assassinatos extrajudiciais sejam vistos, por grupos de policiais e ex-policiais, em serviço ou não, como atos aos quais se podem recorrer e perpetrar ocasionalmente, não importando o objetivo oficial.
Todos esses últimos episódios, envolvendo a Polícia Militar, não são bem casos isolados, mas também não nos permitem, levianamente, deduzir que se trata de uma orientação clara e consciente da instituição. Manifesta, antes, traços de um padrão de conduta, de uma regularidade que está, em razão de fatores históricos e sociológicos variados, enraizados na polícia e nas forças de segurança e repressão no Brasil. O racismo, o ethos da repressão física e a ideia de “permissão” às práticas ilegais, a criminalização e perseguição dos pobres, presentes na atuação policial cotidiana no Brasil são produtos de um conjunto de fatores: desde a herança escravocrata e oligárquica, a socialização autoritária e policialesca dos policiais gerada pela militarização da polícia à falta de reconhecimento social dos PM’s (baixos salários, trabalho em condições arriscadas e estressantes) que acaba por os incutir um forte sentimento de ressentimento e revolta que são descarregadas na própria sociedade. É neste ponto de descarga, que os consensos morais institucionalizados sobre a desigualdade do valor das pessoas e classes de pessoas atuam, tornando essa descarga socialmente seletiva, descontada em cima dos mais pobres e minorias.
Se há uma lição que podemos retirar desses eventos aqui analisados, é que ao revelarem traços extremamente problemáticos de um padrão de resposta mobilizado pela polícia contra conflitos e problemas sociais e políticos, eles expõem como apesar de todos os investimentos e atenção para formação de novas modalidades de policiamento e dum ethos policial distinto (comunitário, cidadão, de proximidade), ou seja, uma polícia mais próxima e capaz de dialogar, seus efeitos ainda estão longe do desejável.
De fato, os abusos e o padrão de comportamento observados nesses episódios evidenciam o quanto os aspectos coercitivos, militar e autoritário ainda pesam e operam na polícia. Nesse sentido, a persistência e recorrência desse padrão violento, socialmente estigmatizante e gerenciador de ilegalismos tornam premente a necessidade de repensar o papel da PM e rever sua forma de organização (militaresca) à luz de sua compatibilidade com uma sociedade que se imagina e se deseja mais democrática.