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A imperdoável cegueira historiográfica da Veja

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Por Diego Fernandes,

(Mestrando em História pela UFRN)

Mais uma vez, a revista Veja comprovou aquilo que todo estudante de história já ouviu: o caráter rasteiro e ideológico de sua produção jornalística. O semanário da Abril recentemente deu mais um motivo para fortalecer a comum aversão que muitos historiadores, e outros estudiosos das ciências humanas, nutrem a seu respeito. Trata-se da “análise” veiculada pela Veja sobre o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012), em razão do seu recente falecimento. Reduzido a um “idiota moral” (sic), o autor de A Era dos Extremos (1994) é caricaturado pela Veja como um historiador cego pelo véu da ideologia marxista. Na visão da revista, Hobsbawm foi alguém que se deixou contaminar pela “cegueira vermelha” do marxismo, assim aponta o autor da matéria.

Em vez de examinar e refletir sobre a vasta e importantíssima obra historiográfica do autor, suas repercussões teóricas e políticas, a Veja opta conscientemente e – por que não? – ideologicamente por acusá-lo, denunciando-o pelo crime que os historiadores ditos metódicos do século XIX mais temiam, a saber: a parcialidade do cientista. É a partir do mito da objetividade, da história descarnada das opções políticas, como diria um outro grande historiador, Lucien Febvre (1878-1956), que a Veja se levanta para esmagar a obra de um historiador cujo trabalho e talento tanto contribuíram para a historiografia dos últimos 40 anos.

O julgamento inquisidor da Veja contra Eric Hobsbawm não mostra apenas a dimensão ideologizante da revista, mas escancara para os leitores o completo desconhecimento da mesma acerca da historiografia a qual o historiador inglês esteve vinculado, assim como suas contribuições.

É lamentável e vexatório que a revista Veja, que diz ter um compromisso com a qualidade jornalística e respeito pelo leitor, desconheça ou omita a contribuição inegável do historiador britânico para a historiografia e para a própria compreensão do Ocidente sobre os séculos XIX e XX.

Ao lado de Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson e Perry Anderson, companheiros da famosa New Left Review, Hobsbawm participou ativamente do movimento historiográfico cunhado pelo slogan history from below, definido por uma concepção de história orientada e preocupada com os excluídos e os marginalizados da História; a massa anônima que até então era renegada ao silêncio por uma historiografia mais oficial, que somente dava voz e visibilidade aos “grandes homens” e aos “grandes feitos”. Seu trabalho Os bandidos, de 1969, se insere neste contexto de renovação da historiografia inglesa, bem como seu livro sobre a história social do Jazz, escrito em 1959, como uma proposta de “jornalismo histórico”.

A preocupação com a cultura popular, a atenção dada à teoria da história e o anseio de escrever uma história pra além dos compactos muros da universidade, materializados não só na famosa tetralogia das “Eras” (A Era das Revoluções [1962], A Era do Capital [1975], A Era dos Impérios [1987] e A Era dos Extremos [1994]) mas também em livros igualmente importantes como A Invenção das Tradições (1983) e Nações e Nacionalismos (1991), são outros contributos indispensáveis de Eric Hobsbawm a serem mencionados.

Um historiador honrado e congratulado pelas principais instituições acadêmicas em todo o mundo mereceria, no mínimo, uma análise atenta à pluralidade e importância de sua obra no contexto em que ela foi gestada e produzida. A Veja não respeitou o homem que é tido pela comunidade dos historiadores com um dos grandes intelectuais do “breve século XX”, como gostava de dizer o próprio Eric Hobsbawm.

A maior parte dos homens, intelectuais ou não, somente desfrutam de alguma honraria e reconhecimento após a morte. Hobsbawn, por sua vez, graças ao seu talento e rigor, foi prestigiado e reconhecido em vida. A Veja, no entanto, reduzindo-o a um mero propagador de ideias políticas, a um fanático confessional marxista, tenta infamar e macular o prestígio e o reconhecimento que o historiador obteve e desfrutou em sua vida. Uma vida, aliás, dedicada à história.

Nesse sentido, reforço aqui a reposta de repúdio dada pela Associação Nacional dos Historiadores à matéria da Veja  (Aqui).