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Pra que servem as Ciências Sociais?

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Por Alyson Freire e Carlos Freitas

Diferentemente de outras áreas de conhecimento, as contribuições das Ciências Sociais não são tão evidentes e transparentes aos olhos das pessoas. E isso leva muitos a deduzir apressadamente que aquelas ciências humanas não trazem contribuições práticas ou mesmo significativas para a humanidade, se comparadas às ciências duras e naturais. Talvez isso se explique pela particularidade do tipo de “bem” disponibilizado continuamente pela produção científica nas ciências sociais assumir duas formas; uma geral, civilizatória e outra mais prática, objetiva e concreta. Neste texto, falaremos de ambas. Porém, para seguir a lógica utilitária da pergunta enfatizaremos mais a segunda dessas formas de contribuição.

As Ciências Sociais, de um modo geral, para além dos resultados práticos do conhecimento produzido, possuem sua relevância e “serventia” numa singularidade muito própria a elas, a que poderíamos chamar sua contribuição civilizatória à humanidade, qual seja: elas proporcionam um tipo de conhecimento, consciência e inteligibilidade dirigido ao mundo e à vida dos homens e que pode ser incorporado pelas pessoas, grupos e instituições.

As Ciências Sociais são a um só tempo uma forma de inteligência equipada com métodos, conceitos e teorias e um tipo de sensibilidade inquieta diante de tudo o que nos cerca, quer sejam fenômenos propriamente humanos ou fenômenos outros que deslaçam conseqüências humanas. Essa é sua dimensão fascinante e apaixonante da qual deriva sua grande contribuição no sentido de colaborar, de modo variado (sociologicamente, historicamente, antropologicamente), por meio dessa forma de inteligência e sensibilidade peculiar, para o autoesclarecimento da sociedade e dos indivíduos acerca do que se passa, de seu lugar no mundo, das questões e processos sociais que moldam seus destinos. Porque tal não se encerra em grandes mentes, teorias ou estudos mas pode sim ser apropriada por indivíduos, grupos, organizações e instituições diversas. E, como ferramenta reflexiva, “aplicada” as suas ações, ideias, crenças, projetos para entendê-las, moldá-las, transformá-las ou projetá-las dentro dos contextos de vida de cada qual.

No entanto, numa concepção pragmática de saber e de contribuição-utilidade isso pode parecer geral demais e abstrato. De modo que essa generalidade mais atrapalha do que ajuda a esclarecer a resposta da pergunta “para que servem as Ciências Sociais?”. Sem abrir mão ou envergonhar-se de sua contribuição civilizatória, vamos, então, em nome da objetividade e precisão com nos que inquirem, expor quais as contribuições das Ciências Sociais nesse quase século e meio em que elas existem. Para assim, quem sabe, lançar luz sobre aquela infame pergunta.

Os bens produzidos pelas Ciências Sociais são estritamente “sociais”, isto é, conhecimentos que vão ser compartilhados coletivamente, estruturando as formas de organização das sociedades humanas. Não são casas, computadores, estradas, automóveis ou compostos químicos que ajudam a salvar vidas ou a fabricar armas de destruição em massa o conjunto de bens produzidos e disponíveis pelos cientistas sociais. Mas sim informações, ideias e conhecimentos especializados sobre os significados e conseqüências desses inventos sociais acima e como eles se relacionam com uma série de fenômenos, condições e práticas humanas.

Para que fique mais claro, e darmos corpo a essas contribuições que, aos olhos mais exigentes, podem parecer demasiadamente gerais, vamos mencionar resultados mais concretos e objetivos, mais fáceis de serem mensurados e visualizados do que essas contribuições reflexivas, “bens de civilização”, cujo valor para a humanidade pode passar desapercebido para concepções que querem encerrar ciência em produção de tecnologia, esquecendo que ciência é igualmente produção de cultura, formação e reflexão mediante pesquisas, debate, produção intelectual de ideias.

Na passagem do século XIX para o século XX, nos EUA, houve um grande fluxo de imigrantes no país que se aglomeravam nas grandes cidades norte-americanas, resultando em situações de forte tensão e exclusão social. Gerados principalmente pela pobreza, violência, criminalidade e conflitos étnicos-raciais. Foi em meio a esse cenário de conflito social e urbanização acelerada que surgiram os famosos estudos sociais da Escola de Chicago, preocupada, nas suas pesquisas empíricas, em compreender o processo de assimilação e marginalidade urbana. Como se sabe, tais pesquisas forneceram, pioneiramente, importantes relatórios e propostas de intervenção pública, que foram utilizados na elaboração de políticas de habitação, de combate à criminalidade e à discriminação.  As pesquisas da Escola de Chicago constituíram a base das políticas de planejamento urbano e de inclusão social para populações em situação de vulnerabilidade.

E o que dizer da contribuição das ciências sociais para os estudos da cultura? Na França, durante as décadas de 1960 e 1970, importantes pesquisas sociológicas e históricas na área de educação e cultura resultaram em grandes reformas do Estado, no que se refere principalmente a elaboração de políticas culturais e educacionais. O foco dessas pesquisas teórico-empíricas era a compreensão do fenômeno de produção e reprodução da desigualdade do desempenho escolar e aprendizado cultural entre indivíduos e coletividades (classes sociais, grupos de gênero, grupos de etnia). Até hoje, tais estudos são referências para aqueles que lidam com os temas da educação e cultura no mundo todo no sentido de elaborar propostas educacionais e administrativas para contrabalancear ou mesmo desconstruir tais desigualdades por meio de medidas políticas e pedagógicas.

Ainda nesse sentido, os estudos psicosociológicos de Piaget e Vigostky sobre as pré-condições psicossociais do aprendizado infantil que ajudaram a reformular as metodologias de ensino nas escolas e as didáticas e estratégias de aprendizagem de professores, é mais uma dessas contribuições “concretas”.

Não obstante, também sociólogos, antropólogos, linguistas, psicólogos têm se dedicado ao estudo da cultura, desde sua origem até os processos de assimilação e incorporação pelos indivíduos e coletividades. Tais estudos além de proporcionarem o conhecimento de outras culturas e povos foram muito importantes, por exemplo, para desconstruir e combater teses racistas e naturalistas que defendiam uma suposta inferioridade de comunidades, povos e até civilizações inteiras com base em suas práticas culturais. Esses estudos e pesquisas etnográficas, etnológicas e históricas foram responsáveis, em grande medida, para a mudança de postura da civilização ocidental em relação às práticas culturais, crenças, formas de vida de outros povos. Essa extraordinária contribuição se materializou nas diretrizes dos mais importantes organismos multilaterais e internacionais (ONU, UNESCO, OMC, OMS, etc.).

No campo dos estudos da cultura e da historiografia, imaginem a situação dos negros, dos povos indígenas e mesmo das mulheres sem tais estudos realizados nas ciências sociais. Ou ainda, o que seriam das manifestações culturais populares regionais e locais sem amplo trabalho de historiadores da cultura, de etnólogos e antropólogos sociais. Se existem hoje uma consciência mais ou menos coletiva e organizações voltadas a preservar e fomentar a importância e prática da cultura popular, devemos agradecer ao árduo de trabalho de cientistas sociais como Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Claude Lévi-Strauss, etc..

Poderíamos falar ainda dos estudos e pesquisas na sociologia do trabalho que, juntos ao movimento operário e sindicatos, tanto contribuíram para a formação de um Estado de Bem-Estar Social e seus instrumentos de seguridade social; a previdência, assistência, seguros, aposentadoria. Ou, os estudos sobre sociologia rural que têm servido de fonte de consulta para a elaboração de políticas de dinamização econômica no meio rural, a exemplo das políticas de crédito e cursos de qualificação de mão de obra, estratégias de mediação de conflitos.

Pensemos ainda, por exemplo, nos estudos clássicos de Karl Marx sobre a dinâmica de funcionamento e as crises cíclicas do sistema capitalista. Até hoje é leitura e fonte obrigatória daqueles que lidam continuamente com a gestão econômica e fonte de grandes analistas nas principais instituições financeiras do mundo para se compreender as origens da crise. Aliás, atualmente, é cada vez mais comum encontrarmos cientistas sociais (sociólogos, antropólogos e psicólogos) realizando pesquisas de mercado e consultoria para grandes empresas que buscam compreender melhor as preferências, gostos e tendências comportamentais dos consumidores, contribuindo na elaboração mais personalizada das políticas de marketing e publicidade e produção dos produtos e serviços.

Em Ciências Sociais, não distinguimos radicalmente nem hierarquizamos contribuições e resultados tendo em vista suas conseqüências imediatas e objetivas. Pois, qualquer cientista social bem sabe que algumas de suas contribuições mesmo que não notadas à época pelos seus pares de área, pode mais a frente realizar seu potencial. Além do mais, outro ponto importante consiste em que pontes, estradas, computadores, tecnologias desaparecem, mudam, são descartados. Ás vezes é impossível medir o tempo de algumas contribuições das Ciências Sociais porque elas se tornam contribuições culturais, bens da civilização. Elas ajudam a forjar sentidos, valores e crenças, tais como democracia, liberdade, igualdade, diversidade, respeito à diferença, etc.. Como medir em termos de tempo ou utilidade essas contribuições imateriais, subjetivas? Essas contribuições que, embora aparentemente não tão concretas e objetivas quanto tecnologias ou remédios ou reformas educacionais e projetos de planejamento e intervenção, fornecem aos indivíduos e instituições da sociedade linguagens, semânticas e parâmetros pelos quais elas agem, pensam e compreendem suas vidas cotidianas, julgam objetivos e metas. As Ciências Sociais são, em sua dimensão mais civilizatória e concreta, imaterial e objetiva, verdadeiras fontes de conhecimento e de ação humana, e são, igualmente, fontes de avanço e transformação social, política e cultural das sociedades graças a essa sua dupla característica de produzir conhecimento com resultados subjetivos e objetivos, imateriais e concretos, os quais ajudam a moldar o presente e o futuro da sociedade, seus valores, práticas, relações sociais e instituições.