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A capoeira revela o que nos cabe

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Giovanna Mantuano é educadora e socióloga.

É impressionante como o tempo atua como revelador silencioso de nossa verdadeira essência e dos lugares aos quais realmente pertencemos. Em meio às escolhas da vida, somos frequentemente levados a insistir em ambientes e relações que, por mais que pareçam promissores no início, acabam por nos corroer lentamente. É nessa experiência que compreendemos a importância de não nos apequenarmos para caber em espaços que não são nossos — uma lição que, embora simples em narrativa, é profunda em vivência.

A frase que abre esta reflexão — “Nunca se apequene para caber em lugares que não são seus” — não é apenas uma expressão de impacto. É uma síntese de sabedoria. Muitas pessoas permanecem em contextos hostis por medo ou hábito, mesmo quando tudo ao redor já sinaliza que ali não há crescimento, tampouco respeito. O tempo, no entanto, ensina com rigor: o que é nosso permanece, e o que nos fere, por mais disfarçado que esteja, um dia nos obriga a largar de mão.

Outro dia, refletindo sobre minha trajetória, pensei nas situações e espaços em que nunca consegui me encaixar. A capoeira foi um desses lugares. Não porque eu não fosse capaz, tampouco por me sentir superior ou inferior a ela. A capoeira continua tendo um significado profundo para mim, mas hoje entendo: ela não é para mim. Você entende o que quero dizer?

Participei ativamente de dois grupos, dos quais me afastei por motivos semelhantes: permanecer em ambientes adoecedores é uma forma de morrer aos poucos. O primeiro grupo me destruiu em silêncio; o segundo quase me matou em voz alta. No primeiro grupo fui vítima constante de gaslighting por parte de um dos regentes, aprendi de maneira cruel que nem todo jogo é físico, e esse jogo pode ser mental. Sofri perdas sociais relevantes, tranquei a faculdade, perdi sete quilos e carrego até hoje marcas psíquicas desse período em que quase cheguei à exaustão. Fui exposta a violências simbólicas e subjetivas em público.

No segundo grupo, vivi outra experiência vexatória. Fui acometida por mandinga, diziam eles – um termo comum em contextos de matriz africana – e, partir de então, tudo desandou. Perdi o emprego, não consegui concluir a monografia (à época), adoeci física e mentalmente, criei inimizades e cheguei a um estado quase cadavérico.

Há quem romantize o sofrimento, atribuindo-lhe um papel redentor. Mas é preciso cuidado com essa narrativa. Sofrimento prolongado não edifica: adoece. Aprendi que nem toda dor é útil, e nem todo desconforto é fase de crescimento. Algumas dores apenas nos alertam para o fato de que insistimos onde deveríamos ter encerrado o ciclo. A capoeira ensina e a gente aprende a reconhecer o que nos fere – e quem. Aprende que há gente ruim, mal-intencionada, em todo lugar, desde o “crente” ao “povo de santo”.

A capoeira continua sagrada, mas a fé na comunidade que a cerca precisa ser constantemente repensada. É hora de parar de tratar o sofrimento como currículo de honra. Ambientes saudáveis não exigem sacrifícios constantes. Relações genuínas não cobram sua sanidade como ingresso. Se algo te exige esforço constante para te aceitar, então talvez o problema não seja você. O tempo revela — com crueldade, às vezes — o que nos pertence e o que apenas nos tolera.

A capoeira revela o que nos cabe.