Miguel Dias é professor de Relações Internacionais na UNILAB (CE)
No Burkina Faso, país na África Ocidental, desde 2016 que os conflitos entre forças armadas do governo e grupos islâmicos travam violentos combates, deixando milhares de mortos e deslocados. A pobreza extrema, a corrupção e a fragilidade do Estado alimentam o conflito, que se alastra para países vizinhos.
O conflito na Somália, que se arrasta há décadas, é uma teia complexa de fatores interligados, com raízes históricas, sociais e políticas profundamente entrelaçadas. Entre as causas principais encontra-se uma profunda fragmentação do Estado, com a ausência de um governo central forte e coeso. Essa fragmentação deu espaço para a ascensão de grupos armados, milícias e clãs que disputam o poder e o controle de recursos, alimentando a violência e a instabilidade, somando-se ainda a pobreza extrema, a falta de oportunidades de emprego e educação e a escassez de recursos.
O conflito no Sudão, mergulhou o país em uma profunda crise econômica e social, forçando 11 milhões de pessoas a abandonar suas casas. No Sudão, a cada 24 horas, morrem em média 30 pessoas por motivos de conflitos étnicos. O Sudão possui recursos valiosos (ouro, petróleo e água), mas a distribuição desigual e a falta de mecanismos de gestão transparentes geram conflitos entre diferentes regiões e grupos étnicos. As riquezas do Sudão têm sido alvo do interesse do ditador Vladimir Putin que, através da organização paramilitar de origem russa “Grupo Wagner”, atual “Africa Corps”, tem recebido o direito de exploração de minas sudanesas. Perante esta situação privilegiada, estará a Rússia disponível para tomar uma posição no Conselho de Segurança da ONU? Como membro permanente terá legitimidade para se posicionar num conflito onde tem interesses?
O jornalista turco Göktay Koraltan escreveu um artigo de opinião na BBC News classificando a guerra no Iêmen como “a guerra esquecida que deixa milhares de crianças feridas e passando fome”. A fome, as doenças e a falta de acesso a água potável e medicamentos dizimam a população, enquanto as partes em conflito não demonstram interesse em um acordo de paz. Em setembro de 2014, os houtis (grupo armado) tomaram a capital do Iêmen, Sanaa, expulsando o governo. Na primavera seguinte, uma coalizão liderada pela Arábia Saudita interveio, apoiada pelo Reino Unido e pelos EUA. Apesar dos interesses de mais dois membros do Conselho de Segurança da ONU (Reino Unido e EUA), tentando minimizar eventuais impactos quanto ao crescimento do terrorismo e controlando possíveis problemas com a segurança no Mar Vermelho para proteger as rotas do comércio internacional, as soluções não têm surtido efeitos e a guerra prolonga-se com grande sofrimento para a população iemenita.
Em Mianmar, a repressão militar contra a minoria Rohingya (minoria muçulmana) foi considerada um crime de genocídio pela ONU. Centenas de milhares de pessoas foram mortas ou obrigadas a fugir de suas casas, vivendo em campos de refugiados em condições precárias. No passado dia 1 de fevereiro de 2024, fez 3 anos que iniciou o conflito no país e, recordando esse momento, António Guterres (secretário-geral da ONU) indicou que a situação “continua piorando e seu efeito é arrasador sobre os civis”. O conflito em Mianmar é preocupante e um terço da população do país, precisa urgentemente de assistência humanitária.
Em mais um conflito no continente africano, a turbulência política desencadeada pelo golpe de Estado no Níger rapidamente se transformou em um tabuleiro de xadrez geopolítico, com jogadores tanto do Ocidente quanto da Rússia lançando suas peças em uma disputa complexa e perigosa. O que inicialmente parecia ser uma questão interna do Níger, rapidamente se revelou como um cenário onde as agendas globais estão em jogo. A presença marcante de bandeiras russas e declarações de apoio a Moscou durante os protestos de apoio ao golpe em Niamei (capital do país) demonstra a influência crescente da Rússia na região. Enquanto isso, a reação da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), reflete a preocupação com a estabilidade da democracia e a manutenção da ordem constitucional na região. Devemos permanecer céticos em relação às intenções proclamadas tanto pela Rússia quanto pelo Ocidente. Enquanto Moscou argumenta em favor da autodeterminação e contra o neocolonialismo, suas ações muitas vezes refletem uma busca por poder e influência regional.
No Haiti, país caribenho, a violência e a instabilidade política são constantes, agravadas por um terremoto devastador em 2010. A pobreza extrema, a falta de infraestrutura e a corrupção impedem o desenvolvimento do país, que mergulha cada vez mais em uma crise humanitária. Após o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 2021, grupos armados assumiram o controle de grandes áreas do país. São múltiplas as razões históricas, políticas e econômicas que colocaram o país nessa situação. No entanto, apesar de longínqua, não pode ficar esquecida a posição da França que só concordou com o reconhecimento da independência em 1825 e exigindo duras condições financeiras para o Haiti. Onde está agora a França, uma das nações líderes na União Europeia e membro permanente do Conselho de Segurança da ONU? Quais os seus posicionamentos para a estabilidade na região? E onde estão os EUA para repararem erros do passado como a ocupação militar por 20 anos ou as várias intromissões em processos eleitorais no país?
Olhando agora para o médio oriente, a brutalidade da repressão do regime de Bashar al-Assad (presidente da Síria) contra protestos populares deu início a um conflito multifacetado, com diversos grupos armados lutando por diferentes agendas. Como saldo, 300 mil civis mortos e milhões de refugiados. A disputa pelo poder entre o governo e grupos rebeldes, os múltiplos posicionamentos e a inércia da comunidade internacional alimentam a continuidade do conflito. O tabuleiro de xadrez se desenha com a Rússia apoiando o regime de Assad, fornecendo ajuda militar e política, os EUA fornecendo treinamento e armas a grupos rebeldes e a União Europeia dividida em relação à melhor forma de lidar com o conflito.
Os casos dos países apresentados são marcados por conflitos que, apesar de suas particularidades, apresentam similaridades preocupantes. Origens complexas, entrelaçadas com pobreza, desigualdades, fragilidade estatal e autoritarismo, alimentam guerras que geram sofrimento incalculável. Milhões de refugiados e deslocados internos, crises humanitárias graves, mortes em massa e traumas psicológicos compõem o panorama devastador.
Diante da repetição de padrões, a inoperância da comunidade internacional se torna evidente, cruel, desumana e injustificável. A falta de consenso entre potências, o veto de países com interesses geopolíticos, a prioridade da economia face aos direitos humanos e a lentidão das ações impedem soluções eficazes. A comunidade global precisa repensar suas estratégias, buscando soluções coerentes, abrangentes e duradouras que considerem as origens e necessidades específicas de cada contexto.
Por exemplo, por que a guerra na Ucrânia ascendeu ao topo dos noticiários globais? A proximidade geográfica com a Europa, a ameaça à ordem internacional e a narrativa do bem contra o mal moldaram a percepção do conflito. A Ucrânia, país europeu de maioria branca e cristã, despertou a empatia e o senso de urgência da comunidade internacional. A reflexão é apenas provocatória e não pretende minimizar a barbárie do que o regime de Putin está fazendo ao invadir um país soberano como a Ucrânia.
Em contraste, os conflitos em Burkina Faso, Somália, Sudão, Iêmen, Mianmar, Níger, Haiti e Síria, envolvendo nações majoritariamente negras, muçulmanas ou de baixa renda, lutam pela paz e por algum protagonismo na mídia internacional. A indiferença à sua dor é um reflexo de um sistema internacional desigual, onde a cor da pele, a religião e o poder econômico definem a importância de uma vida.
Existe guerra com solução prioritária? Quem define essa prioridade? A comunidade internacional, com seus argumentos frágeis, com suas ações incoerentes e sua hipocrisia institucionalizada, coloca em risco a própria noção de humanidade. As guerras entre Ucrânia-Rússia e Israel-Hamas, com todas as suas consequências trágicas, não podem ser as únicas a merecer atenção e medidas concretas.
A guerra não é um espetáculo ou um “reality show”. É uma tragédia humana. Cada vida ceifada, cada refugiado desamparado, cada família dilacerada, cada criança órfã, cada morte…. é um grito silencioso que exige atenção. A comunidade internacional precisa romper com a seletividade da sua compaixão e reconhecer que a dor humana não tem cor, religião ou fronteiras.
Ao questionar a indiferença e a seletividade da atenção global, podemos e devemos dar voz aos conflitos silenciados e construir um mundo mais justo, mais igual, mais equitativo e mais humanista.
Cabe a nós, cidadãos do mundo, pressionar os grandes atores internacionais a agir com justiça e imparcialidade. As guerras não podem ser divididas em categorias de importância. A vida, em qualquer lugar do planeta, é sagrada e merece ser defendida.