Colha o dia, confie o mínimo no amanhã.
Ode a Leucónoe, Horácio
Sexta-feira é um belo dia para se fazer mercado! Por ser um dia de folga para o casal, Arnor e Célia não perderam a única oportunidade tiveram, na semana, para comprar a feira do mês.
Por se tratar de um supermercado que oferece cartão de crédito próprio, Arnor teve a ideia de, na ocasião, cuidar em ter seu crédito, pois, assim, poderia dividir o pagamento das suas compras em pelo menos duas vezes. Célia não relutou. Ambos foram para a central de atendimento do estabelecimento, a qual estava, para a sorte deles, sem nenhum cliente; melhor dito, não havia fila alguma. Seriam atendidos rapidamente, pensou Arnor.
Quando a atendente do guichê solicitou a documentação para realizar a contratação do cartão de crédito, Arnor teve logo uma dor de cabeça: seria preciso que ele tivesse, além de documento com foto e CPF, um comprovante de residência em seu nome.
— Moça, eu tenho um comprovante de residência, mas é de minha conta de internet — Disse Arnor, visivelmente incomodado.
— Infelizmente, não pode, senhor. É preciso que seja um comprovante de água ou energia em seu nome, ou em nome de seus pais; são as normas da empresa — Disse a atendente, com olhar complacente.
— Eu entendo, mas é muito estranho, porque todo mundo aceita este comprovante de residência — Disse Arnor, contrariado, em protesto.
— Sim, senhor. Mas eu sigo ordens.
— Eu entendo, moça. É estranho, mas entendo. Agora é engraçado, porque eu, sendo homem feito, de 40 anos, preciso de um comprovante de residência em meu nome. Como pode, eu, um adulto, ter que procurar meu pai para pedir um papel de energia dele! — Disse Arnor, indignado.
— Entendo, mas é assim, senhor — Disse a moça, compreensiva, porém, com expressão de quem queria dizer algo que não poderia. Arnor, em seguida, compreendeu seu olhar.
— Célia, faça o seu cartão, que eu vou iniciar as compras — Disse Arnor, revoltado.
— Ô, amor, espera — Disse Célia, docemente.
— Não, não. Você fica aqui e eu vou lá — Disse Arnor, resoluto.
Com estalar dos lábios, ecoando um muxoxo, Célia continuou sua diligência.
— Ele não tem paciência, né? — Disse a atendente, que contou com a aprovação de Célia.
A cada item posto no carinho de compras, uma cipoada de pensamentos invadia o espírito de Arnor.
— Eu compreendi o olhar daquela moça, quando eu resmunguei; eu sei que ela pensou o mesmo que eu, assim que falei — Arnor falava consigo mesmo. Eu sei que mais absurdo do que eu, homem adulto, ter que pedir o papel de água de meu pai, é eu não ter uma casa ainda no meu nome — balbuciou Arnor, em seus pensamentos.
O ressentimento de Arnor não se dava porque ele não tinha acumulado bens ao longo da vida, mas sim porque ele não tinha se planejado. Nunca teve inveja de amigo algum que “venceu na vida”; sempre se via como “alguém” – não era preciso ser rico para ser “alguém na vida!”, ele gostava de pensar.
O que realmente incomodava Arnor era que, “de repente”, ele tinha quarenta anos e não tinha se atentado para as implicações de sua idade. Quer dizer, Arnor viveu a vida amalucadamente; viveu como um glutão e um monge: alimentou o espírito e o corpo nos anos de sua juventude. Entretanto, ao que parece, levou a expressão Carpe diem (“colha o dia”) a sério demais, ou, o que parece ser o mais provável, leu somente a parte que lhe interessava do poema, esquecendo-se do resto da frase: “colha o dia, confie o mínimo possível no amanhã” — confio pouco mas confiei! Ou talvez tenha realmente confiado o mínimo, ou nada, no amanhã!
Entre uma lata de ervilha e uma colônia nas prateleiras do supermercado, Arnor reencontrou um antigo colega da moradia coletiva – residência universitária, não república –, do tempo da faculdade. Conversa vai, conversa vem, ele esqueceu-se completamente dos pensamentos que lhe angustiava a alma. No fim do dia, encontrou-se em casa, junto a Célia, tomando sua cerveja, comendo sua carne assada, enquanto observava sua motocicleta financiada na garagem, a qual ecoava, imaginativamente, a frase “eis seu projeto de vida!”.
No fundo e na superfície, Arnor sabia que bens materiais não dizem respeito à conquista da felicidade, sabia também que não são bons referenciais para a serenidade. Porém, ele também sabia, ao ler as lições éticas de Aristóteles, que não é possível ser feliz na extrema pobreza, sitiado de inimizade e na solidão; ter feição horrorosa, ser sovina ou gastador; ser imprudente e valentão.
Arnor sabia que uma vida feliz, nos termos aristotélicos, era a busca pelo equilíbrio, praticando bons hábitos, possuir alguns bens – para ser independente – e ter bom caráter – para não ser indigno. Arnor também sabia que o mantra de quem vive sob a sombra da mansidão é se afastar do mal, aproximar-se do bem, procurar a paz e a perseguir, como recomenda o salmista.
Com o passar dos anos, Arnor compreendeu que, para si, seu melhor projeto de vida seria viver o hoje, sem esquecer-se do amanhã; evitar gastanças, para não se ver em apuros, e não se privar dos moderados prazeres da vida, para não ter sequidão do espírito. Esquecer o passado tragicômico e mirar o presente futurista eram as linhas mestras da retidão de percurso: importam os métodos e os objetivos, a duração e o percurso que fazem o caminho.
Com o passar do tempo, as experiências, informações e conhecimentos se tornaram sabedoria na vida de Arnor. E saber disso faz com que ele tenha seu coração aquecido por dias mais gloriosos, sendo sabedor de que quem a fama almeja, a infâmia bafeja.
Por sua vida não ser uma fábula, e sim uma crônica, não há moral da história para os leitores! Todavia, pode-se dizer que Arnor aprendeu que o caminho se faz ao caminhar.