Os dois mapas aqui apresentados revelam dados sobre os ataques terroristas atuais na capital potiguar e a mancha de homicídios na cidade. O primeiro foi feito pelo Prof. Carlisson, Geografia da UFRN. O segundo foi elaborado pelo mestre em Demografia pela UFRN, Pedro Henrique de Oliveira Freitas.
Sobrepor as duas cartas evidencia que os atuais ataques terroristas no RN tiveram como alvo prioritário as regiões mais pobres da cidade, as periferias. O salve e a concretude dos ataques expõem a predisposição dos terroristas para atacar trabalhadores autônomos, seguranças, transeuntes, pequenos empresários e comerciantes.
Na tarde de 16/03 homens passaram de motocicleta pela Zona Norte de Natal determinando o fechamento do comércio local (caso contrário, incêndio e arrastões). A ordem era atacar a Zona Norte, e assim foi feito. Se o primeiro mapa for atualizado, ele mostrará que o terrorismo ocorreu também nas regiões que já apresentam maiores taxas de homicídio e presença de organizações criminosas na ZN.
Cotejar os dois mapas evidencia o que todos os trabalhadores pobres do país já sabem: que as facções criminosas promovem narcoterror nas regiões periféricas das cidades, onde muitos residem. Por isso, não há amizade entre trabalhadores e bandidos ali, mas uma guerra silenciosa. Facções assassinam, oprimem, aterrorizam, expropriam, roubam, estupram, degolam, assaltam pessoas pobres e trabalhadores(as) nas ruas, calçadas, nos carros, ônibus e paradas de ônibus. O salve não mudou muito a realidade da periferia de Natal.
Diferente das periferias, as áreas brancas em ambos os mapas são aquelas mais bem policiadas e mais ricas. Por exemplo, a Zona Norte é patrulhada principalmente pelo 4º Batalhão da Polícia Militar, que segura nas mãos, constantemente, dias parecidos com os que a cidade inteira experimenta apenas eventualmente, durante os salves. Enquanto a Zona Sul dispõe de muitas companhias e batalhões de polícia, com presença de equipamentos permanentes, o patrulhamento da Zona Norte é quase todo realizado por apenas um único batalhão.
Há uma discrepância imensa de policiamento nas regiões da cidade, entre as áreas vermelhas e brancas dos dois mapas. Essa discrepância tem uma raiz econômica clara. Os mais pobres e mais periféricos de Natal são aqueles que contam menos com a presença de policiamento e prédios de segurança. Nesse hiato, as facções criminosas se alastram com mais facilidade e podem operar com mais violência, uma vez que sua territorialidade funciona como fortaleza, baluarte para a permanência desses, cada vez mais consolidados, neofeudos. Em 2020, 72,3% dos homicídios foram patrocinados pelo tráfico de drogas em Natal. A maior parte dessas pessoas, sujeitos pobres, negros.
Diferente do que alguns sociólogos e antropólogos da UFRN têm apontado, não é “a sociedade” que tem sofrido igualmente com os salves, mas, principalmente, as periferias.
Muitos intelectuais, pesquisadores e militantes dos direitos dos apenados e Direitos Humanos têm insistido na estória de que os ataques terroristas estão sendo causados, sobretudo ou com forte relação, pelas condições de vida dos presos nas cadeias. Eles insistem nisso mais do que as próprias facções. Contudo, não se observa nenhum conteúdo reivindicatório nos ataques terroristas atuais. Só ataques aos trabalhadores. Eles não demandam condições mais humanas nas cadeias, ao contrário, têm servido para promover e manter o narcoterror, o domínio geopolítico e econômico das facções no Estado. Ceteris paribus, este será o primeiro de uma leva desse tipo.
Longe de servir para garantir direitos e regalias para os apenados, tais terrorismos servirão para que essas organizações criminosas imponham arregos (impostos) sobre os pequenos empresários dos bairros pobres e cidades. Por isso mesmo estão todos sendo vítimas potenciais do atentado atual. Eles passarão a cobrar uma mensalidade para que não assaltem, incendeiem ou mandem fechar esses pequenos comércios, garagens e mercados. Como fazem facções e milícias em outros Estados. Já mostraram que podem fazer isso, dia após dia de “enfrentamento”.
Reproduzir essa propaganda estratégica de uma parcela da facção como sendo um elemento causal importante para explicar “a violência na sociedade” e o próprio salve é um passo determinante para conferir ares de legitimidade a esse e aos próximos que virão. A sociedade e, principalmente, a periferia assaltada, roubada, assassinada pelas facções aqui fora, que envia esses criminosos para as cadeias, não pode ficar refém das “demandas” que esses homens queiram impor. Televisões, lanches, longas horas de sol, encontros sexuais, etc. Da outra vez, foi para que não tivesse bloqueador de sinal na cadeia. Cada demanda, um salve.
O policial mais recruta sabe que esses ataques estão, na verdade, ocorrendo devido às mortes de dois bandidos, em confrontos que ocorreram nas Rocas, e pelo consequente aumento da atividade policial, ali onde criminosos quiseram incitar um protesto com fantasia de apelo civil por “paz” e atacaram uma companhia da Polícia Militar, com explosivos. A paz, para a facção, é um ótimo cenário para seu crescimento econômico e político. Afinal, o mercado precisa de condições mais ou menos pacíficas para florescer. Esse salve é uma queda de braço que as facções travaram com o Estado e o mercado oficial. E olhem o resultado!
O Estado pode oferecer um castelo da Disney como prisão, mas facções continuarão fazendo o que sempre fizeram. Esses homens estão presos ali justamente por terem feito com os trabalhadores periféricos o que facções sempre engendraram: roubo, morte, extermínio, genocídio, opressão, dominação política, chacinas. Não existirá uma cadeia cinco estrelas que impedirá a empresa anarcocapitalista faccionada de crescer aqui fora, de ampliar seu domínio territorial, sua força, seu poder, sua dominação dos corpos e seu genocídio da população negra e pobre. O que o RN inteiro tá engolindo em poucos dias é um grande gole do veneno que as periferias bebem diuturnamente, em quantidade um pouco mais diluída.
Contudo, defender que esses ataques têm como causalidade principal, ou correlação relevante, as demandas prisionais por dignidade, produz alguns efeitos. Afinal, tudo é discurso e todo discurso quer algo que não foi explicitado por ele (o meu é exatamente o que o leitor está pensando). O primeiro desses efeitos é o de conferir ares de reivindicação política, de protesto legítimo, ao que é narcoterror. Nada, absolutamente nada, justifica de maneira nenhuma um salve como esse! As vítimas desses atentados não têm sido ninguém relacionado às causas desses problemas prisionais, mas os trabalhadores, o que revela que não se trata disso.
Um segundo efeito que esse discurso produz, disparado por certos intelectuais da UFRN (mas não a maioria) e militantes dos Direitos Humanos, sobretudo, é o de conferir ilegitimidade para qualquer ação bélica que o Estado tome na retomada do seu monopólio legítimo da força, da justiça e do tribunal. É que, alimentando o discurso de que há um protesto justo aqui, atacar e enfrentar esses homens com a força coercitiva do Estado – o que é urgente! – passará a ser entendido como o sufocamento das demandas “da população carcerária negra e pobre”. Quando, vemos, a população negra e pobre, na verdade, é a vítima, o Outro da facção criminosa e do crime.
Trata-se de um discurso de transferência de culpa. Ele acaba por absolver a violência das ações criminosas, transferindo-as para “causas sociais” elusivas, e passa a culpar “a sociedade” por violências anteriores impostas aos presos. O salve aparece como uma reação quase natural. Se o faccionado não chega a ser teleguiado por “fatores sociais”, pelo menos ele foi impelido a “se defender”. Não a agência capitalista gore e ultravioleta da facção criminosa, mas uma reação a uma sociedade que lhes deu as costas e que os oprimem. Vítima passa a ser algoz, e algoz, vítima. É o discurso que ajuda a facção criminosa sendo promovido por intelectuais que, não por acaso, atuam e escrevem em favor desses sujeitos. Em desfavor da sociedade. Mas a sociedade se defende.
Facções e trabalhadores sempre tiveram uma relação de conflito e embate, muitas vezes silenciosa. Quando morre um bandido em confronto com a Polícia, a população periférica, negra, pobre e qualquer outro marcador muito destacado, sai nas calçadas com sorrisos não disfarçados no rosto, filmando e se alegrando. É que a população pobre sabe que, vivo, aquele é um lobo a dominar os corpos e as vidas de todos ali, com uma .12 caseira ou um .38 alugado na boca.
Diferente do que quer fazer crer uma parcela de militantes da esquerda, não existe identificação entre trabalhadores, periféricos e bandidos. A última eleição deixou isso muito claro. As relações entre eles podem não chegar a um conflito declarado, mas unicamente porque a população não dispõe de ferramentas para se defender, políticas ou individuais. Mas, quando são pegos por populares roubando, esses bandidos são imediatamente linchados, muitas vezes até à morte, caso a PM não chegue antes ao local da ocorrência.
Mas do que um ato de justiçamento bárbaro, esse é um indicativo de que há um conflito sub-reptício pronto para e em condições de emergir nas periferias. E o salve direcionado aos mais pobres e periféricos tem como objetivo justamente, além de criar o cenário ótimo para cobrança de impostos ilícitos, impedir a eclosão de tais conflitos.
Esses não são “protestos” visando a realização de demandas dos apenados, e menos ainda, por qualquer razão, legítimos, mas ataques terroristas direcionados à classe trabalhadora para que essa reconheça seu lugar subalterno frente a essas organizações anarcocapitalistas, que monopolizam tribunais privados, “segurança” privada, taxação privada e controle empresarial-militar dos corpos e das vidas da gente pobre do país.