“Qual é a fronteira exata entre o “voto útil” e o “voto fútil”? Votar em “quem vai perder” é realmente inútil? Ou votar contra a própria consciência e preferência é mais inútil ainda?”
UMA BIFURCAÇÃO CHAMADA “LULA OU BOLSONARO”
Embora a precisão não seja o ponto mais forte das pesquisas eleitorais, e algumas até, mundo afora, já tenham sido desmoralizadas e até desmentidas quando apurados os votos, o cenário das eleições de 2022 está claro, especialmente nas “redes sociais”, onde o cabaré de robôs e perfis fakes ainda não ameaça a hegemonia das pessoas “reais”, cada vez mais algoritmadas: nos últimos anos, meses e dias a maior parte do Brasil delimitou e pavimentou uma poderosa bifurcação chamada “Lula ou Bolsonaro”. A terceira via, o terceiro fator, o terceiro olho, um meio de caminho, um terceiro homem, um cearense brabo, uma mulher, um playboy, um padre estranho, a onça da vara curta, nada disso parece ter convencido sequer 20% dos eleitores. Mesmo que, pela união dos poderes de todos os outros candidatos, um “capitão planeta” altruísta e multi-ideológico tivesse sido convocado emergencialmente para acrescentar um caminho novo à bifurcação, ele provavelmente não teria nem a metade dos votos do segundo colocado nas pesquisas. O Brasil gritou alto sua aposta dual, binária, bipolar. E tem feito isso de maneira mais brutal que nas eleições passadas.
Como chegamos à supremacia dessa bifurcação? Por muitos motivos, incluindo esses, em ordem decrescente de influência:
1) a atual polarização expressa um antagonismo de valores, narrativas e classes muito mais pop e quente que o tão velho e morno [agora vemos!] ping pong PT vs PSDB: a onda dos últimos anos já não é tanto “privatização vs estatização”, “política social vs saúde fiscal” ou “coxinha vs mortadela” – hoje até meigo –; o lance agora é “progresso vs Amazônia”, “armas vs cotas”, “pai vs filho”, “Bíblia vs ideologia de gênero”, “Olavo de Carvalho vs Roger Waters”, “madeireiros vs índios”, “milicianos vs identitários”, “fascismo vs comunismo” “brancos/Europa vs negros/África”, “machismo vs feminismo”, “militares saudosistas vs guerrilheiros culturais”, “revolução de 64 vs golpe de 64”… A grande polarização atual, embora muitas vezes superficial, ilusória e subjetiva, mexe com coisas mais profundas, perigosas e contagiantes que a polarização anterior.
2) ante o receio de permitir mais um turno a Bolsonaro e os seus [que teriam mais tempo para conspirar contra a democracia, e se fortalecer], milhares de eleitores normalmente não petistas, à direita e à esquerda, decidiram não só votar Lula no primeiro turno, mas pedir voto para o “único candidato que pode derrotar Bolsonaro no primeiro turno”.
3) ante os números baixos de Ciro e cia, milhares de eleitores de espírito mais jogador, apostador, menos leais a ideias ou princípios do que ao orgulho e utilitarismo de não votar em quem “não pode ganhar” [essa profecia que, obviamente, vai se realizando à medida que acreditamos nela!], preferiram antecipar o clima de grande final de campeonato, e se desinteressaram pela(s) terceira(s) via(s).
4) petistas e bolsonaristas souberam trabalhar separadamente juntos para afastar os outros candidatos do ring: Lula e PT jamais lutaram de verdade pelo impeachment de Bolsonaro; Bolsonaro, em certo sentido, não se mostrou muito incomodado com a soltura de Lula; etc, etc, etc.
É MELHOR JAIR LULANDO?
Para toda a esquerda não petista e para todos os brasileiros que rejeitam o chamado “bolsonarismo”, o “voto útil” em Lula no primeiro turno soa atrativo quando:
1) você acha que se o “mito” que os anima ficar mais um turno no trono, com os botões do controle estatal por perto e a chance de derrotar Lula renovada, os bolsonaristas terão mais tempo, ânimo e maquinaria institucional para promover levantes, ataques, perseguições, protestos violentos ou mesmo um golpe militar;
2) você supõe que as queimadas, invasões de terras amazônicas e indígenas, e outras ilegalidades e crimes cometidos ou protegidos por esse governo terão mais tempo para prosseguir, e uma razão para se apressar, já que os canalhas tentarão aproveitar os últimos dias e semanas do mandato;
3) embora prefira Ciro, Tebet ou qualquer outro, você ou também gosta de Lula, ou odeia Bolsonaro o bastante para querer empurrar Lula logo pro trono;
Por outro lado, o “voto útil” em Lula não parece uma decisão correta:
1) para quem lembra que o PT se negou a garantir a vitória de Ciro Gomes no primeiro turno, em 2018 [quando era o único capaz de derrotar Bolsonaro, segundo as pesquisas], e condena a hipócrita incoerência e falso patriotismo dos petistas que hoje cobram a desistência de Ciro, quatro anos depois;
2) para quem acha que Bolsonaro [quem sentou e permaneceu no trono com a “ajuda” indireta do PT, que permitiu que o capitão ganhasse em 2018, e não lutou como devia por seu impeachment] já fez o que tinha de pior para fazer, e num eventual segundo turno dificilmente praticará atos mais sinistros dos que os já cometidos, inclusive em função da maior pressão e vigilância nacional e internacional sobre seu governo;
3) para quem acha que, mesmo diante de todos os riscos listados no começo do texto, Lula e o PT não são suficientemente melhores que Bolsonaro para que seu voto em Ciro, Tebet ou qualquer outro migre pra Lula.
E agora? Como devemos votar? Qual é o voto mais útil? Qual é o candidato mais digno? Quem está certo|?
Concentrar os votos em Lula já no primeiro turno pode nos oferecer uma enorme vantagem: debilitar o bolsonarismo e suas desgraças com mais velocidade e impacto. Mas a vitória de Lula no primeiro turno também pode trazer uma enorme desvantagem de curto, médio e longo prazo: o enfraquecimento de uma esquerda alternativa e viável ao PT [encarnada quase que solitaria e tão quixotescamente por Ciro e os seus, atualmente] e de uma direita alternativa a Bolsonaro alimentará muito a bipolarização atual e o antipetismo mais doentio, e em breve as violências pontuais evoluirão para a guerra civil [os milicianos têm se armado e preparado para isso, aliás].
Não desviar agora os votos de Tebet e principalmente de Ciro para Lula pode nos trazer uma dádiva: ajudar Lula e os seus a revisarem suas decisões em 2018 e seus métodos de hegemonia para o futuro. E também uma maldição: o fortalecimento do bolsonarismo e suas misérias durante mais um turno.
Apesar disso, não votar em Lula no primeiro dificilmente causará a vitória de Bolsonaro no segundo turno. Se houver segundo turno, a grande maioria dos eleitores de Ciro certamente votará no PT – como em 2018.
VOTO ÚTIL OU VOTO FÚTIL?
Se você sente ódio de Bolsonaro e pouca rejeição pelo PT, e sua confiança e admiração por Ciro ou Tebet não é forte, eu sei que você vai votar em Lula no primeiro turno. E fará isso por ódio. Se você sente medo de Bolsonaro e muita rejeição pelo PT, e sua admiração e confiança em Ciro ou Tebet não é forte, eu sei que, ainda assim, você vai votar em Lula no primeiro turno. E fará isso por medo.
Se você sente enorme repulsa pelo bolsonarismo, mas também não gosta muito do PT, e sua confiança e admiração por Ciro ou Tebet é forte, eu sei que você não vai votar em Lula no primeiro turno. E fará isso por confiança e admiração.
É melhor Jair Lulando? É melhor votar contra Bolsonaro, ou no seu candidato preferido? É melhor votar pra derrotar quem você teme ou odeia, ou votar para ajudar quem você admira e confia? Em qual sentimento você prefere apostar?
Qual é a fronteira exata entre o “voto útil” e o “voto fútil”? Votar em “quem vai perder” é realmente inútil? Ou votar contra a própria consciência e preferência é mais inútil ainda? Onde acaba a verdadeira utilidade do voto, e começa sua futilidade? Um voto nascido do medo ou do ódio é mais útil que fútil? Um voto nascido da confiança ou admiração é mais fútil que útil? A eficácia da aposta, o jogo eleitoral, a vitória de um candidato, são mais importantes que o gesto, o apoio, o sinal, a mensagem que o voto também pode oferecer?
O voto é sempre uma aposta. Nenhum de nós sabe o que vai acontecer de fato. Devemos assumir os riscos das nossas apostas. Convido os e-leitores a colocar na balança esses prós e contras o “voto útil” em Lula, e decidir conforme sua consciência, razão e intuição.
A LADAINHA CIRO VS PT, E O DESTINO DAS PRINCIPAIS FORÇAS POLÍTICAS BRASILEIRAS
Lula e Ciro têm duas grandes virtudes: gostam realmente do “povão [coisa rara entre os grandes políticos brasileiros]; e são surpreendentemente obstinados e resistentes. Os ex-amigos também compartilham dois grandes defeitos: a vaidade, e a teimosia.
Tirando isso, e outras afinidades ideológicas mais gerais que específicas, eles exalam naturezas bem distintas. Lula é um plebeu com grande carisma e aguda astúcia para negociações. Ciro é um patrício de grande intelecto e ampla visão para projeções. Lula é um pragmatista nato que padece de limitações cognitivas que o impedem de compreender cenários complexos e de longo prazo, especialmente os cenários econômico e cultural. Ciro é um teorizador nato que padece de travas emocionais, comunicacionais e visuais que o impedem de atingir pra valer o “Brasil profundo”. Lula arrebata e barganha mil vezes melhor que governa. Ciro governa mil vezes melhor que arrebata e barganha. Enquanto no entender de Lula a vitória e estabilidade do governo justificam a corrupção funcional resumível na máxima “deixar roubar para conseguir governar”, o currículo de governador, prefeito, ministro e deputado de Ciro não inclui sequer acusações de corrupção.
O/A líder esquerdista ideal para o Brasil necessariamente é uma espécie de mistura de Lula e Ciro, uma vez que suas maiores virtudes políticas se completariam, e seus maiores defeitos políticos seriam parcialmente anulados. Luro ou Cila, esse exímio pensador e jogador político, infelizmente, ainda não nasceu – ao contrário dos monstruosos “BolsoLula” e “Cironaro”. Mas poderia ter nascido e sido adequadamente treinado, se seus pais fossem grandes amigos e parceiros.
Nos últimos anos, as vertiginosas e inusitadas ondas da política brasileira estimularam e revelaram ainda mais as vigorosas discrepâncias entre os dois líderes. Num Brasil sem Lavajato e Bolsonaro provavelmente Lula e Ciro teriam continuado amigos ou aliados…
Ao menos por mais tempo, já que mais cedo ou mais tarde eles se tornariam grandes inimigos políticos. Porque Ciro jamais será petista, muito menos depois da ascensão do antipetismo. E porque Lula jamais apoiará a ascensão de Ciro rumo ao trono, ciente de que um bom governo de esquerda não petista, num país consideravelmente antipetista, ameaçaria profundamente o PT.
O tamanho de Lula é inseparável do tamanho do PT, um dos maiores partidos do mundo, e dos mais influentes dos últimos séculos. A antipatia pelo PT, hoje tão comum, exagerada e na moda, não raramente é fruto da inveja, da ignorância e do ódio de classe, e não da revolta, crítica e convívio lúcidos. O poder aglutinador do Partido dos Trabalhadores é algo que devemos compreender e respeitar, se não pretendemos ser analfabetos políticos. É evidente que para ter chegado tão longe, os petistas acertaram muitas e muitas vezes. Como tudo na vida, precisamos admitir que o PT, apesar de seus graves erros morais e metodológicos, e da estagnação e mediocridade intelectual que frequentemente o convertem numa seita de fanáticos, tem um lado bom, defensável, saudável, bem-vindo, e absolutamente necessário ao Brasil. Marina, Aécio, FHC, Ciro e Bolsonaro nunca se tornaram tão populares e poderosos quanto Lula em grande parte por não contarem com um partido orgânico, capilarizado e altamente potente. Em certo sentido, o PT é o único partido do Brasil, e um dos poucos da América Latina. Os outros partidos brasileiros ainda precisam amadurecer e crescer muito para alcançar seu nível.
A REDE é genuína. PDT, PSB e PCdoB têm raízes fortes, mas troncos finos e flores excessivamente coloridas e dispersas. O PSDB deixou a primeira divisão do campeonato, mas tem raízes fortes. O PSOL já ingressou na primeira divisão, mas ainda não governou o bastante para comprovar maturidade. Os demais partidos são sopas de letrinhas de aluguel, ideologicamente confusos demais, ou pequenos demais para influenciar o país.
Por falar em influência, como bem disse o sagaz e autêntico Reinaldo Azevedo [cujo atual excesso de “generosidade” para com Lula e o PT, aliás, soa como uma tentativa deliberada ou inconsciente de compensar ou curar sua antiga antipatia excessiva pelos “petralhas”], Ciro e Bolsonaro manifestaram nessa eleição certa “aliança objetiva”, à medida que o crescimento de Ciro pela esquerda debilitaria o maior adversário de Bolsonaro, e a ida de Jair ao segundo turno debilitaria o maior adversário esquerdista de Ciro.
Contudo, entre a delicada e perigosa tática cirista de captar votos conservadores e antipetistas entre eleitores pouco simpáticos a Bolsonaro [um projeto que demanda alguns anos para funcionar bem], e o apoio de Ciro a Bolsonaro num eventual segundo turno, existe um enorme abismo. As falas e posicionamentos do trabalhista já manifestaram centenas de vezes o quanto ele rejeita mais Bolsonaro do que Lula. Apesar disso, o cearense sabe que terá mais chances em 2026 se conseguir incorporar parte das demandas antipetistas e conservadoras dos eleitores mais ao centro e à direita [especialmente em matéria de costumes, monopolismo e altos juros dos bancos, guerra à corrupção, e segurança pública], do que se tentar superar o PT, digamos, pela esquerda, através de suas eloquentes explanações sobre economia.
Uma votação muito baixa nessa eleição e a recente fratura política dos Gomes no Ceará [fratura de cor vermelha, por sinal], configuram uma bomba política capaz de: ou implodir e soterrar definitivamente a força política presidenciável de Ciro; ou explodir seu grande potencial político para muito além do PDT e da esquerda, rumo à formação de uma nova tendência política que orbitaria em torno de sua singularidade. Não há outro caminho para Ciro versão 2026: ou ele se distancia de vez do PT e abraça melhor o centro e a direita, ou será definitivamente eclipsado pelo dueto certo dos próximos anos: petismo governista vs bolsonarismo de oposição. Ciro, em certo sentido, é maior que o PDT. Se conseguir atrair o “Brasil profundo” para si (como até um ju-mito da laia de Bolsonero conseguiu fazer, meio sem-querer-querendo) e o próximo Governo Lula cometer certos erros fatais, Ciro tem boas chances de sentar no trono em 2026.
Lamentavelmente, a imaturidade política, mediocridade intelectual e doentia bipolaridade do Brasil atual atraem e premiam políticos de intelecto raso como Lula, e de moral subterrânea, como Bolsonaro. A paixão dos brasileiros por homens como Lula e Bolsonaro, em que pese a enorme superioridade moral do nordestino perante o miliciano, comprova o quanto somos o país do futebol e das torcidas, e estamos longe de ser o país da decência e dos livros.
Ao contrário do que disse o tão amargo Josias de Sousa, o maior responsável pelo baixo desempenho eleitoral de Ciro em 2022 não é Ciro, mas o Brasil. Com essa nova derrota, o país perde muito mais que o pedetista. É triste que ainda não sejamos capazes de enxergar os talentos, obras e virtudes de Ciro Gomes. Apesar de sua linguagem hermética, fala turva, exorbitante agressividade e ostensivo sentimentalismo, ninguém está mais pronto que ele para ocupar o trono. Ciro merece governar o Brasil. Mas o Brasil ainda não merece ser governado por ele. Seja como for, em 2026 ele terá sua última oportunidade de convencer os brasileiros de uma verdade que transcende barreiras e gangorras ideológicas: nem um outro candidato conhece tão bem o Brasil, e elaborou um plano de “salvação” de curto, médio e longo prazo tão minucioso, coerente e bem argumentado.
E por falar em salvação, Marina Silva fortaleceu seu partido e suas causas ao apoiar “programaticamente” Lula no primeiro turno. Mas certamente também fez isso para aliviar seu possível arrependimento por ter apoiado Aécio, em 2014. E assim fizeram muitos outros. A frente ampla e democrática encabeçada por Lula de certa forma pacificou o meio de campo político brasileiro, e conseguiu melhorar a saúde política de um país adoecido de monólogos ideológicos e conflitos políticos secundários.
Contudo, duas doenças terríveis continuam bem ativas nesse corpo coletivo e campo de futebol chamado Brasil: nosso “centrão”, e nossa ponta direita. Se o PT não achar uma maneira de dominar – sem a costumeira feitiçaria da corrupção – as forças sombrias que há décadas sequestraram o Congresso, o governo de Lula não chegará muito longe.
Por outro lado, é óbvio que a vitória do petismo acirrará a bipolarização e alimentará a fera bolsonariana com carne vermelha e fresca. A ascensão do fascismo na Itália e o receio de serem presos no Brasil, convidam os Bolsonaro a se refugiar entre os herdeiros de Mussolini e afiar o potencial internacionalista da extrema direita brasileira. As sementes da guerra civil já estão brotando, e mais cedo ou mais tarde os milicianos atacarão o PT e os seus de maneira mais ampla e violenta. A vida de Lula corre mais perigo que nunca.
A vitória de Tebet ou Ciro amenizaria essa febre bipolar, e o país poderia respirar melhor por alguns anos. Mas as multidões são muito lentas, inerciais, dualistas, passionais e inconsequentes para aprender a jogar um novo jogo em pouco tempo, e o PT vai sendo erguido festivamente de volta ao palácio. Se a queda e ascensão de Lula, da prisão à presidência, é um drama interessante, épico e pedagógico, o fracasso da(s) terceira(s) via(s) e a intensificação da gangorra petismo vs bolsonarismo, por outro lado, é um suspense triste, pobre e perigoso demais para valer o preço do ingresso.
É realmente isso que os eleitores de Lula querem?
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