Alipio De Sousa Filho,
Cientista social, professor e diretor do Instituto Humanitas – UFRN
A maior de todas as mentiras de Putin é a que sua guerra visa a “desnazificação” da Ucrânia. Ora, pode um nazista desnazificar o que quer que seja? É Putin o nazista, não o governo ucraniano ou o povo ucraniano. Na Ucrânia, não há um partido nazista no poder, nem sua população apoia o nazismo. Naquele país, vigora uma democracia e seu presidente Zelensky foi eleito, em 2019, com 73% dos votos, em uma eleição livre. E existe uma sociedade que quer conservar sua democracia e autonomia, sem mais submissão a regime totalitário.
Equivoca-se quem pensa que o nazismo se reduz à doutrina do hitlerismo, como obra de Hitler e seus agentes, o ditador que fez a guerra ao mundo nos anos 1939 a 1945. O nazismo é um método de ação política pela dominação. Tornou-se método de todos os regimes ditatoriais-totalitários. Esse método político, mas que nega a própria política, é idêntico no hitlerismo, no fascismo, no stalinismo, nas ditaduras e nos regimes totalitários instalados em alguns países. E esse é o caso também do regime que assegura o poder de Putin e por ele é controlado. Conforme o relatório 2021 da Freedom House, 49 países estão sob ditaduras no mundo hoje.
Como disse, o método nazista faz da ação política um ato de dominação; e, por isso mesmo, é uma negação da política, pois nega a participação, o debate, a divergência. Ele visa o aniquilamento do outro. Esse aniquilamento pode ser praticado de várias formas: desde o assassinato e extermínio puro e simples à nulificação de qualquer um pela aberrante posse e abuso da vulnerabilidade humana, ao fazer, com o uso do horror como técnica, que o outro perca todas as possibilidades de reagir, reduzido à condição que corta essa vulnerabilidade de qualquer amparo; o que corresponde ao corte de toda condição humana de viver, pois, padecendo de uma vulnerabilidade ontológica, o ser humano depende do amparo humano para existir, e mesmo ficar vivo. O método nazista premedita a supressão desse amparo e o faz com o uso de dispositivos cruéis de imposição da submissão do outro, até poder submetê-lo em sua total fragilidade, num ultraje total de sua dignidade.
É com esse método que funciona o regime de Putin. Herdeiro do stalinismo, ele põe em funcionamento a máquina do método nazista que age na Rússia desde os tempos da União Soviética. Assim é que, naquele país, não existe liberdade de imprensa, opositores ou críticos do regime são assassinados, presos ou confinados em colônias penais. O regime de Putin usa um agente químico, o Novichok, como veneno para matar jornalistas, políticos dissidentes, e o faz mesmo fora da Rússia. A população russa vive sob a vigilância totalitária, controlada em todos os seus passos. O método nazista do regime de Putin inclui também a prisão de crianças, como se viu em imagens recentes na repressão ao povo russo nos protestos contra a invasão da Ucrânia. Desde o início da invasão, já são mais de 7 mil pessoas presas e obrigadas a pagar multas financeiras por participação em protestos.
O método nazista do regime de Putin é utilizado também para a perseguição e a repressão violenta a minorias étnicas, religiosas e ao movimento LGBT. No regime de Putin, pessoas gays, lésbicas e trans não tendo o direito de viver livremente e com igualdade de direitos em território russo. Em janeiro de 2016, o Partido Comunista da Federação Russa apresentou proposta de lei para punir as pessoas que expressam publicamente sua homossexualidade com multas e prisões; o projeto de lei não foi aprovado. A Rússia está entre os países que o movimento LGBT mundial classifica como tendo uma homofobia de Estado. Conforme associação internacional gay, “nos canais estatais, os homossexuais são apresentados como pervertidos, agentes estrangeiros infiltrados ou pessoas doentes que devem ser curadas”.
A mentira de Putin não engana sobre os seus propósitos. Falando de “desnazificação” da Ucrânia, ele visa justificar sua pretensão expansionista. Aqueles poucos que o apoiam sabem que estão mentindo como ele e com ele; e só o fazem por cinismo – “sabem muito bem o que fazem, mas mesmo assim fazem”; e guardam a consciência suja de um apoio sujo. Entre seus apoiadores, existem aqueles envergonhados, que, sem a coragem de dizer até o fim o que pensam e abraçam como posicionamentos políticos e compreensões do mundo, tergiversam com mil e um falsos argumentos, sofismas, “análises” e “contextualizações”, para apenas não dizer de uma vez por todas que aquilo que também concebem e defendem são formas autoritárias e ditatoriais de governo, para as suas sociedades e para as demais, admiradores que são das ditaduras e dos ditadores.
Essas “contextualizações” reivindicam que “a culpa é da OTAN, do Ocidente, EUA e países europeus, pois são expansionistas, imperialistas e ameaçam a Rússia”. Esses entes existem, como existe, de fato, a pulsão expansionista e imperialista, mas nenhum deles invadiu a Ucrânia. E é disso que se trata agora. É essa invasão a país soberano que cabe condenar! Mas os apoiadores cínicos ou envergonhados de Putin falam como se todos do mundo estivessem na bolha ficcional-ideológica na qual se reconfortam em repetir uma verdadeira “novilíngua”, tal como denunciou George Orwell, em seu 1984.
Esses apoiadores de Putin contribuem para o rebaixamento da percepção das universais inviolabilidades da dignidade humana e da autodeterminação dos indivíduos, povos e países. Escolhendo não fazer julgamentos ético-morais sobre as violações e violências que regimes e governos ditatoriais-totalitários praticam e sem considerações sobre os sofrimentos que estes impõem às pessoas, esses apoiadores cooperam com o que a filósofa Hannah Arendt chamou a “temível banalidade do mal”, quando “o Mal [perde] a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem”.
Mas o mundo inteiro está contra a guerra particular de Putin, incluindo grande parte da sociedade russa, contra o massacre do povo ucraniano, povo que não quer sua submissão ao método político nazista como forma de governo, e que fez opção livre pela democracia.
Nossas democracias liberais ocidentais têm defeitos e cometem erros, e necessitam ampliar a participação democrática igualitária, aprofundar igualdades de direitos e revogar instituições que conservam desigualdades inaceitáveis. Mas, para a democracia, vale também o que o cosmólogo Carl Sagan disse sobre a ciência: “a ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos”! Então, pois, “nestes dias sombrios”, como tantos dizem, não podemos abrir mão nem de ciência nem de democracia!