Alipio De Sousa Filho (Professor e Diretor do Instituto Humanitas UFRN)
Não é de hoje que as universidades, e por toda parte, são visadas pelos mais diversos grupos políticos, religiosos e empresariais como instituições a ser aparelhadas para seus interesses. O fato já levou a que historiadores e estudiosos tenham dito que as universidades são instituições “sitiadas” e “incompreendidas” por todos os lados nos mais diversos países e desde suas origens.
Mas, na história, o aparelhamento (ou uso) das universidades por interesses alheios aos objetivos para os quais estas existem recebeu sempre o repúdio daqueles que não aceitavam que fossem rebaixadas em suas funções. Hoje, aqueles que não aceitam que as universidades sejam ocupadas e usadas por interesses alheios aos objetivos do conhecimento teórico-filosófico-científico, o único que se pode transmitir e produzir nas universidades, devem agir da mesma maneira: repudiar e combater toda tentativa de aparelhamento e por qualquer grupo (político, religioso ou mesmo “clãs” administrativos que se instauram no poder sem alternâncias). O assunto aqui não pode ser tratado com a seletividade que alguns gostariam: repudia-se a ação de aparelhamento de uns e aprova-se a de outros grupos. A universidade não pode ser aparelhada por nenhum grupo.
Vale para a universidade o que vale para o Estado, aliás, porque ela é uma instituição estatal. Modernamente, o Estado é um ente neutral, e somente pode exercer seu poder neutral se situar-se à distância de todos os interesses. O que não quer dizer imparcialidade, pois, ao ser neutral, o Estado apenas (o que é muito e é seu papel!) suspende interesses e visões particulares como “seus” próprios para fazer que, na sociedade, possam circular os mais diversos pontos de vistas sobre as coisas, desde que não sejam pontos de vistas que reivindiquem o seu próprio monopólio ou prejudicar os demais. Dessa maneira, o Estado nas sociedades democráticas liberais não é o poder que, evocando falsamente a democracia, possa permitir que tudo se diga e tudo se faça. Ele é neutral na condição de – sem distorcer o que seja a democracia – garantir que todos os grupos possam se manifestar mas desde que suas manifestações não correspondam a pleitos de monopolização que sufoquem as demais ou que representem demandas que ferem direitos ou atendem contra a dignidade humana.
Por isso, merecem repúdio todas as tentativas de corromper a ideia democrática ao se pretender, como fortemente vemos hoje no Brasil e em outros países, manifestar ofensas, preconceitos, discriminações, injúrias, calúnias ou mesmo graves mentiras em nome da “liberdade de expressão” – uma distorção que vem sendo legitimada mesmo por certos juízes em decisões que igualam calúnia à liberdade de expressão. Assim como merecem repúdio todas as tentativas políticas de tornar as instituições de Estado agências de interesses religiosos ou outros particulares, em nome da democracia, que se tenta falsificar em benefício de alguma intrujice.
Entre outras aquisições moderno-contemporâneas que devem ser permanentemente reforçadas como a se tornarem irreversíveis, está a separação entre Estado e religião. E vivemos em sociedades seculares (embora a permanência de crenças religiosas) que já construíram para si outras formas de compreensão da realidade, e ao Estado cabe impedir que qualquer visão religiosa procure através dele impor-se a todos na sociedade, quando nela há diversas concepções religiosas, cosmologias e mitologias concorrentes, e não crentes e ateus. Não é tolerável, pois, que qualquer grupo religioso procure instituições do Estado para fazer valer suas crenças sem fundamento aos olhos das demais e dos que não professam nenhuma crença religiosa.
O Estado democrático de direito constitucional somente legitima a liberdade de crença, porque ele é neutral e liberal e, por isso, pluralista, mas não admite proselitismo religioso por meio de nenhuma de suas instituições. Assim é que nas escolas e universidades públicas não se permite o ensino religioso confessional. O que evita que o “potencial conflituoso”, como chamou o filósofo alemão Jungen Habermas, das disputas religiosas na sociedade chegue até ao Estado. Disputas que o Estado deve assegurar que ocorram na esfera pública e, por isso, tendo que se manter à distância de todas elas, não assumindo nenhuma para si. Como escreveu o filósofo: “o princípio da separação entre Igreja e Estado exige das instituições estatais rigor extremo no trato com as comunidades religiosas; parlamentos e tribunais, governo e administração ferem o mandamento da neutralidade a ser mantida quanto a visões de mundo religiosas quando privilegiam um dos lados em detrimento de um outro”.
Todavia, com relação à universidade pública e à educação escolar pública em geral, as coisas se passam diferentemente. Essas são instituições de Estado e, nelas, não apenas as religiões devem estar fora dos currículos de formação, como são elas instituições nas quais o único conhecimento que deve ser transmitido é o conhecimento teórico-filosófico-científico. E nelas também não se torna admissível a prevalência de qualquer conceito privado de “bem” (religioso, político, moral ou administrativo) para fazer valer a ideia particular de algum grupo ou pessoa por sobre a exigência da prevalência do que é o correto. A prevalência do correto sobre o bem deve ser/ter força normativa na instituição pública e mais ainda numa universidade. Aliás, como defende a filósofa estadunidense Nancy Fraser, o correto por sobre o bem deve ser norma na sociedade democrática. Mas, num país que não construiu efetivamente o Estado de direito e a República, não se sabe o que é isso: as universidades estão cheias de beatos e beatas pregando dizeres religiosos nos quadros de avisos, salas cheias de insígnias religiosas diversas, celebrações de missas, além de mesuras ideológicas de aparelhamento delas pelas ideias e práticas do neoliberalismo tronituante no mundo, transformando as universidades em empresas, com suas formas e linguagem. O que mais não é que o predomínio de uma visão de grupos econômicos dominantes.
Na instituição pública de educação científica, universidade ou escola básica, o correto não é outra coisa que aquilo que corresponde à construção de entendimentos que não estejam subordinados e mesmo rebaixados a crenças sem fundamento, dogmatismos religiosos ou projetos políticos partidários e seus dogmatismos ou de governos visando sua legitimação. Ou mesmo subordinados a dogmatismos no próprio âmbito da ciência, impedindo desta realizar o melhor dela própria que é ser, como expressou a professora e filósofa Marilena Chauí, “o único saber que contesta a si mesmo”. Aqui, esclareça-se: o problema não é a existência de dogmas, estes existem também nas teorias e ciências. E estas não funcionam sem seus dogmas, já o disse bem Thomas Kuhn. O problema é a prática dogmática ou o dogmatismo nas atitudes cognitivas, epistemológicas, científicas. A universidade não pode admitir dogmatismos, quando mais de crenças religiosas que não se submetem à contestação de si próprias. Todas as vezes que as universidades se viram constrangidas na história de vários países a subordinações de dogmatismos políticos, religiosos ou morais foram sufocadas em suas liberdades de transmitir e produzir conhecimento com a autonomia que devem gozar permanentemente.
Mas, como disse, não pode haver seletividade na crítica e no combate. É preciso, pois, afirmar aqui que, assim como é intolerável o dogmatismo e o aparelhamento da universidade por grupos religiosos para suas causas (nas universidades, religiões, mitologias, cosmologias de todos os povos e culturas são estudadas… e é só isso que as universidades devem fazer), é também intolerável que grupos políticos de direita ou de esquerda busquem o aparelhamento de departamentos, cursos e aulas para seu proselitismo dogmatista. Se se torna intolerável um curso de formação dogmatista de cristãos na Universidade, como igualmente de qualquer outra religião, também se torna intolerável um professor que se autoproclama de “esquerda” invadir, com alunos que ele mobilizou, a sala de uma professora da área de história do Brasil para decretar que “ela não poderia ensinar Gilberto Freyre, porque se trata de autor conservador”, o que é bem estúpido que se diga numa universidade para impedir o estudo de importante autor para o conhecimento da sociedade brasileira. Ou, como o mesmo professor fez tempo depois, agir de má-fé para invalidar todo um concurso público para a carreira do magistério superior porque não admitiu a aprovação de candidato que ele – que se autoelegeu o representante do governo universal da Ditadura do Proletariado – considerava de “direita”, ainda que não se tratasse da verdade. Aliás, que buscou, sem sucesso, até mesmo obter a grafia do mesmo candidato para reprová-lo em concurso anterior, já na etapa da prova escrita, sem qualquer avaliação de desempenho, para eliminá-lo do certame. Como certamente sonha um dia fazer com os “inimigos da revolução”, como aprendeu no dogmatismo da teoria que abraçou. E que alguns de seus seguidores reivindicam monopólio na universidade. Tipo de atitude que não difere da ação de nenhum beato religioso que sonha com uma universidade cristã, mulçumana, judaica ou outra. Essas podem existir, mas em organizações privadas. Universidades estatais-públicas somente podem ser, tal como o próprio Estado, laicas e contrárias a todo dogmatismo.