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Só se torna o que se é, quando nunca se foi

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A UFRN sempre foi meu nicho, desde que vim morar no Natal. Morei quatro anos nessa cidadela, de modo que toda a universidade era – dizíamos nós, residentes – o quintal de “minha” “casa”.

Depois da graduação, ainda perambulei por lá por mais seis anos – entre as desculpas para habitar o local, inventei de cursar um mestrado e uma especialização. A verdade é que eu gostava de frequentar o ambiente.

Já vi e vivi muitas coisas naquele lugar. Entretanto, para além de tudo, uma das impressões que mais se fazem presentes, é, além das boas amizades transeuntes e transantes, uma escrita, dentre tantas que havia no local: “pensei que era, mas foi-se antes que fosse”. eu não faço a menor ideia acerca de quem foi @ gêni@ que inscreveu essa linha.

Já tem mais de dois anos que eu não frequento a UFRN, mas essa frase sempre permanece comigo. De certa forma e em segredo, ela se tornou uma espécie de mantra ou um farol para mim, melhor dizendo. Não alumia meu caminho, nem orienta meus destinos. Entretanto, faz-me muito sentido.

Sim, pois desde os tempos do curso de Filosofia, já tinha em mente que nunca nos banhamos mais de uma vez no mesmo rio, assim como também sabia que “devemos nos tornar o que somos – ainda que nunca tenhamos sido!”.  Essa frase de camiseta contém muita verdade – mundana –, que merece uma reflexão.

A canção “O q é q eu sou”, escrita por Erasmo Carlos e interpretada por Paula Toller, fala sobre grandes questões – filosóficas – da vida. Nela estão contidos questionamentos sobre a essência (o que se é?), a ciência (de onde veio, para onde se vai?) e a realidade (vive-se uma miragem, uma ilusão, um faz-de-contas, déjà-vu, imaginação?). É, acima de tudo, uma bela canção! Gosto de pensar que nela há o conforto de haver algumas das principais questões relevantes e que perturbam os seres humanos – de ontem e de hoje!

A poeta Cecília Meireles escreveu o belíssimo “Retrato”. Nele, ela pergunta sobre qual espelho sua face tinha se perdido.

O que essas fontes têm em comum? Gosto de pensar que a mudança é a seiva que relaciona essa minha elucubração – palavra bonita para referir-se às impressões e sensações confusas e desconexas!

Gosto de pensar que estamos em sinceras transformações. A bem da verdade, socialmente, dizemos que gostamos de mudanças e até alardeamos que somos entusiastas de novidades. Todavia, ao menor teste de fogo, somos reprovados. Raramente aceitamos – com genuína convicção e crença – que as pessoas mudam.

Nenhuma mudança é bem-vinda, nota-se! Cultivamos um frenesi por eternidade, que se tornou inconsciente. Ainda que neguemos, não gostamos de mudanças. Porém, se isso não fosse o bastante, temos inveja e raiva de quem muda. Quando se muda para pior, os detratores dizem, implicitamente: “está vendo, já estava ruim, só fez piorar; não deveria ter mudado!”.

Quando a pessoa muda para melhor – par si e para os outros –, dizemos que é água passageira, que é um fingimento ou algo parecido. Não acreditamos na transformação de ninguém!

Às vezes penso que vivemos em um trecho da canção “Devolva meu disco voador”, de Edgar: “… os pobres não trocam de roupas, são as roupas que trocam de pobres”. Quer dizer, a impressão que tenho é a de que preferem creem nos valores que nos abandonam, em vez de crer que, de fato, podemos mudar. É como se os valores fossem serem autônomos ou ontológicos, isto é, existem independentes de nós e até nos influenciassem.

Não se admite que alguém amigado a x e y valores possa mudar. Por outro lado, exigem de nós, o tempo todo, mudança. Dizem que precisamos oxigenar nossas vidas, dar um “up grade”. Porém, basta um primeiro passo, que uma força newtoniana surge e diz que nossa inércia está em estado de repouso; qualquer movimento é uma flagrante violação dos deveres de se permanecer paralisado.

Não entendo que a sociedade, isto é, os indivíduos, seja hipócrita ou confusa. Entendo mesmo que é assim que a coisa funciona por aqui e, quiçá, no mundo inteiro — com o tempo a gente para de crer em deuses, fadas, meritocracia, justiça e liberdade; com o tempo a gente aprende que esses entes são meras abstrações que dão significados ás nossas vidas!

Por isso, não escrevo para reclamar ou me queixar. Escrevo porque entendo que sem a potência da mudança, não é possível vivermos – em ato.

Lembro-me de que, ao vir a Natal, por ocasião da prova do vestibular, hospedei-me na casa de um amigo. Ele já estudava na UFRN. Ao dirigir-se à universidade, informou-me que mais tarde nos veríamos. Eu precisava ir ao mesmo local, a fim de reconhecê-lo, pois faria prova no dia seguinte. Eu quis acompanhá-lo, mas ele resistiu e disse que já estava atrasado.

— hey, eu vou com tu, visse?

— rapaz, estou de saída agora; mas não tem erro, estamos em frente à UF.

— mas boy, eu não sei andar por lá, irei me perder.

— ótimo — disse-me ele, sorridentemente —, é se perdendo que a gente se acha.

Aquele dizer, que de longe e de perto é clichê, pulsou e pulsa em mim até hoje: é preciso se perder, para se encontrar.

Se não nos tornarmos o que somos, nunca teremos sido. Se nunca se pensar que um dia se foi alguém, pode ser que se deixe de ser antes mesmo que o seja. Sei que falando assim, parece que é um vazio trava-língua entorpecido pelo lazer. Contudo – em muitos casos –, a profundidade pode encontrar-se na superfície, como dizia o mestre Leminski.

O tempo nos possibilita mudar. A mudança mostra-se uma espécie de perdão que o tempo nos oferece. O ato de estar vivo nos viabiliza a potência da transformação. Tornar-se o que é, não é tarefa fácil – perguntem à água; quase dizia: àguia. Geralmente, leva-se o cronômetro de uma vida inteira[mente] – bem vivida!

Dizem que as mudanças são doloridas; talvez isso seja verdade. Mas as dores das mudanças não são provenientes, penso eu, do movimento, antes, porém, o sofrimento é decorrente da falta de fé de nossos entes em relação a nós mesmos e às nossas capacidades plásticas, claro.

Eu já ouvi amigos me dizerem que eu nunca serei nada na vida – o verso é: nunca serei alguém na vida –, assim como ouvi amigos rirem de mim, na minha cara, quando resolvi converter-me à fé cristã. Quando deixei de tragar águaardente, alguns poucos amigos mantiveram-se reticentes; eles diziam que “botavam fé”, mas não botaram fé em porra nenhuma! – ops! me exaltei!

Não gostaria de induzir o leitor a pensar que quero falar de maus amigos ou algo parecido. Também não quero falar sobre pessoas que te puxam para o subsolo – isso é tema de outro texto. Quero apenas registrar que a impressão que eu tenho é a de que parecem haver duas forças da natureza: a que nos empurra e a que nos puxa. Talvez sejam uma mesma força, porém, com faces contrárias, que, se não se complementam, pelo menos de desvelam.

As mudanças pelas quais passamos não são “palavras apenas”, não são “palavras pequenas”. Mudar faz parte da vida; isso não é bom nem mal.

Talvez não nos queiram mal, apenas não sabem comunicar suas boas intenções, é isso que eu penso dos amigos que não enxergam nada em nós, senão fracassos projetados. Digo, parece que alguns torcem contra nós. Alguns ainda dizem que torcem por nós, todavia, nota-se, é apenas uma cortesia. Poucos são os amigos que nos amam ao ponto de estarem felizes com nossas mudanças.

Sei lá, às vezes penso que aferrar-me às velhas formas é uma tremenda bobagem. Veja, a transformação faz parte da realidade humana. O ser humano é e estar; é e deixa de ser. Assim é a humanidade. Quanto mais rápido aprendermos a verdade de que somos uno e múltiplos – fluidos! –, mais rápido aprenderemos a gostar do amigo que mudou – talvez nunca de sua mudança!