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Duna (2021)

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Duna está para a ficção científica como Senhor dos Anéis está para os livros de fantasia. Escrito em 1965 por Frank Herbert, o primeiro livro de uma série de seis, mistura política, religião e ecologia, e inspirou, anos depois, George Lucas na criação de Star Wars. Alguns dos elementos que há em Star Wars está em Duna. O que Lucas talvez fez foi tornar tais ideias mais acessíveis para o público menos exigente. Ficou para Denis Villeneuve (A Chegada, Blade Runner 2049) o desafio de fazer uma adaptação que pudesse satisfazer um público restrito de leitores desse clássico da literatura de ficção científica e os espectadores que nunca leram a obra (afinal são destes que se espera alcançar o retorno financeiro necessário para a obra ter lucro e financiar sua continuação). E uma parte desse desafio é fazer a adaptação de um livro que influenciou Star Wars sem parecer uma cópia desta série de filmes. Na minha opinião, Villeneuve foi bem-sucedido nisso, pois impôs seu estilo que o diferencia de muitos diretores. Mesmo os elementos que George Lucas copiou, como a “voz” (técnica que controla outras pessoas usando nuances de tom na voz do iniciado) que ele inseriu como um dos poderes dos jedi mas que, originalmente, era uma habilidade de alguns personagens de Duna, são mostrados aqui de uma forma bastante peculiar.

Duna já havia sido adaptado ao cinema por David Lynch em 1984. Controversa, a obra chegou ao cinema depois que Alejandro Jodorowsky explodiu a previsão de orçamento na sua tentativa de trazer uma versão bastante particular da obra original e de ter assustado o estúdio com a excentricidade do seu projeto. Na sua versão, haveria a participação de Salvador Dali, da banda Pink Floyd e de tantos outros nomes famosos ou que seriam famosos depois dessa empreitada fracassada que mereceu um excelente documentário, Duna de Jodorowsky (2014). Dentre os nomes que se destacariam mais tarde nos bastidores do cinema de ficção científica está o quadrinista francês Jean Giraud (Moebius) e o artista visual H. R. Giger, que depois participaria do design de Alien: O Oitavo Passageiro (1979).

Artes conceituais para a versão de Alejandro Jodorowsky

Ao contrário dos seus antecessores, Villeneuve optou por dividir o filme em duas partes. Tal escolha pode não ter sido tão satisfatória, comentarei abaixo. Mas boa ou ruim, essa decisão lhe deu tempo para deixar o espectador ambientado, fazendo desta primeira parte uma grande introdução. Pacientemente ele explica (muitas vezes com diálogos expositivos) como funciona aquele universo; a importância de Arrakis, também conhecido como Duna e da sua preciosa substância, a especiaria (mélange), uma substância gerada em Duna/Arrakis que sem ela seria impossível as viagens espaciais de longa distância. Embora o filme não adentre tanto na política quanto o livro, o roteiro se esforça em mostrar a importância do planeta dentro do jogo político do império e os motivos que levam ao imperador Shaddam IV determinar que a casa Atreides assuma o controle de Arrakis após oitenta anos de dominação dos Harkonenn. É dentro deste contexto que o herdeiro da casa Atreides, Paul Atreides, o protagonista do filme vivido por Timothée Chalamet, tem sua ascensão messiânica, militar e política que somente veremos na sua plenitude no segundo filme.

Embora não seja dado tempo suficiente de tela para a maioria importante do elenco, vejo que a escolha dos atores para os personagens principais foi bem acertada. Começando com seu protagonista. Quem assistiu O Rei (2019), e gostou da atuação de Timothée Chalamet, sabe que não poderia haver escolha melhor para viver o jovem Paul. Principalmente para quem leu o livro. Seu físico quase infantil mas com uma expressão que transmite a sabedoria de um ancião é o contraste perfeito para interpretar o protagonista de Duna. Quanto a Rebecca Ferguson, acho que ela faz a entrega mais intensa com sua personagem Lady Jessica, mãe de Paul. Ela consegue entregar o conflito emocional de ter gerado, contrariando os planos da ordem religiosa de que faz parte, as Bene Gesserit, o Kwisatz Haderach — uma versão masculina delas “cujos poderes mentais e orgânicos viriam a unir o espaço e o tempo” (trecho da 2º edição do livro pela editora Aleph, 2017). Sua angustiante dualidade em servir ao duque Leto Atreides (Oscar Isaac) e a reverenda madre causa alguns dos momentos mais intensos da personagem.

As personagens antagonistas, principalmente o barão Vladimir Harkonenn, vivido por Stellan Skarsgård, também merecem destaque. Da maquiagem a interpretação de Skarsgård, mesmo tendo seu tempo de tela limitado como os demais personagens secundários, consegue entregar uma imponência sombria em todos os seus aspectos. Todo o design do mundo dos Harkonenn é sombrio e frio em tons e em emoções.

Dentre as personagens fundamentais para o desenvolvimento da história, não há como excluir os Fremen, povo guerreiro e supersticioso do interior do deserto de Arrakis que será de essencial importância para o crescimento do protagonista. As crenças dos Fremen (crenças introduzidas há muitos anos pelas Bene Gesserit no planeta) chamam Paul Atreides de Mahdi, “Aquele que Nos Levará ao Paraíso” ou Lisan Al-Gaib, “A Voz do Mundo Exterior”. Suas semelhanças com povos do oriente médio não é mera escolha do diretor, essas semelhanças vêm das fontes de inspiração que guiaram o próprio Frank Herbert na construção do universo de Duna. Não há como não associar o mélange ao petróleo e os conflitos gerados nos países do oriente médio por causa desse combustível tão importante para o funcionamento e a economia da nossa sociedade.

Jason Mamoa faz do seu Duncan Idaho um personagem que compre sua função narrativa e entrega a maior parte das cenas heroicas do filme. E parece que são principalmente nas suas cenas que vem parte das críticas a coreografia das lutas em Duna que vi por aí. Quem acompanha os filmes de Villeneuve sabe que isso não é seu forte, e, particularmente, acho que não faz falta coreografias à la Matrix ou John Wick. Por outro lado, esperava mais das cenas da batalha da invasão dos Harkonenn. Há bons momentos, visualmente falando, com enorme escala, mas que geralmente são vistos de longe e em cenas escuras. Provavelmente isto será melhor trabalhado na segunda parte, cujo clímax exige algo próximo à batalha final de Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003). E nessa criação de expectativas para a segunda parte provavelmente está um desafio maior do que foi para Villeneuve esta primeira parte. Pois a sequência de Duna exige tudo aquilo que ele não entregou ou entregou apenas em parte no primeiro filme. A exigência de trazer algo ainda mais épico, mas com seu estilo que o diferencia das grandes produções hollywoodianas semelhantes.

Embora o corte final do filme tenha prejudicado o desenvolvimento de alguns personagens e deixado de aprofundar um pouco mais na questão política, tão importante no livro, acredito que Villeneuve conseguiu entregar o que pôde dentro dos limites da primeira parte do filme. É natural que muita coisa do livro seja excluída durante o processo de roteirização e da edição. Seria impossível, dado a limitação de tempo, dinheiro e a própria linguagem cinematográfica entregar algo fiel a toda complexidade do livro. Neste ponto, foi acertada (embora um pouco frustrante em certo nível) a escolha de dividir esta adaptação em dois filmes. Era isso, ou um filme que ultrapassasse quatro horas de projeção (coisa que eu preferiria, caso vivêssemos em um mundo perfeito).

Mesmo que narrativamente o filme possa desagradar alguns, acho muito difícil que alguém se frustre com seu visual. Ao contrário, a paleta de cores com seu uso do amarelo e das cores frias e a grandiosidade da fotografia, unida com perfeição à trilha sonora de Hans Zimmer fazem de Duna de Villeneuve um filme que nasceu para ser um grande evento do cinema. E quando falo do cinema, também me refiro ao espaço físico, da sala escura com a tela enorme a sua frente e o som estridente. Pois tudo é grande em Duna. O homem é quase como os grãos de areia do planeta deserto diante daquele universo representado com grandiosidade. A escala das coisas faz o homem pequeno diante das máquinas, dos cenários internos ou não, da vastidão do deserto e seus descomunais vermes da areia; mas, principalmente, pequenos em relação à ordem das coisas e ao destino que o planeta e o caminho messiânico de Paul Atreides (ou Paul Muad’dib, como será chamado) reserva para eles.

Infelizmente, diante de tantas fatalidades irreparáveis, a pandemia trouxe mais um mal na sua caixa de Pandora: a impossibilidade de muitos se sentirem seguros de assistir ao filme no cinema, o suporte mais adequado para sua exibição. Pandemia que fez sua estreia em 2020 ser cancelada.

Eu esperava ver a nova adaptação para o cinema de Duna (2021) como uma espécie de versão futurista de Lawrence da Arábia (1965). Há elementos fortes em Duna que tornam apropriada essa comparação, principalmente as fontes de inspiração de onde seu autor bebeu. Um filme de, no mínimo, quatro horas de duração. Mas a realidade atual da indústria cinematográfica norte-americana e a maior parte do público de hoje não permite algo tão arriscado e tão longo para os grandes estúdios. Imagino que, para levar uma obra como Duna para o cinema, onde filmes que passem de duas horas e meia é quase um pesadelo para os produtores, somente restou como opção ao excelente diretor Denis Villeneuve a problemática fragmentação da história em duas partes. Considero problemática pela falta de uma conclusão que corresponda a grandiosidade da obra nessa primeira parte. Seu anticlímax final pode provocar a sensação de uma experiência incompleta. Por isso, para colocar essa nova adaptação de Duna no pedestal onde repousam clássicos do cinema, de Lawrence da Arábia, já citado aqui, à 2001: uma odisseia no espaço (1968), é necessário que sua conclusão chegue ao cinema. Por enquanto, permanece o gosto agridoce de termos diante dos nossos olhos e sentidos uma obra maravilhosa, mas mutilada. Como se tivéssemos encontrado nos desertos do Egito um rico sarcófago parcialmente saqueado com parte dos seus hieroglifos apagados. Ou, para os mais entusiasmados, uma Vênus de Milo cuja falta dos braços ainda é capaz de despertar deslumbramento.

Direção: Denis Villeneuve

Roteiro Jon Spaihts, Denis Villeneuve

Elenco: Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac

Título original: Dune