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A boa filosofia acadêmica brasileira deve ser levada a sério

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O conhecimento filosófico ocidental, que tem por principal característica o apelo ao discurso, o cultivo da racionalidade e diálogo aberto, vem sofrendo todo tipo de ataque e de diversas formas. Ainda que ele seja digno de críticas, faz-se necessário que os praticantes da filosofia acadêmica se prontifiquem a se posicionar firmemente contra os assédios que esse saber padece, sob pena de junto com sua necessária desocidentalização, ocorra também a indesejada desorientação das boas práticas filosóficas.

Quem conhece a história das ciências, sabe que foram muitos séculos de disputas teóricas, até que a universidade, que foi erigida já no século XII, se estabelecesse como fonte de produção de conhecimento reconhecida e legitimada socialmente. Seu status atual foi cultivado sobre pedras de toques e de tropeços.

A partir do Século das Luzes, a filosofia, juntamente com a ciência, conquistou as mentes europeias de vários segmentos sociais, desbancando a autoridade da Igreja, que não raramente aprisionava e matava as pessoas por opiniões científicas contrárias aos seus dogmas. Além dos filósofos e cientistas profissionais, comerciantes e políticos se renderam às práticas humanas orientadas pelo discurso racional. No dia a dia, muitos atos, moralmente bons e ruins, foram realizados sob a égide do conhecimento filosófico.

É necessário que o pensamento seja sempre revisto e criticado. E isso tem sido feito. Aliás, essa prática é comum a todo bom filósofo. O século XX é marcado, no nicho filosófico, por duas grandes vertentes de pensamentos, a saber, a virada linguística, que tem expoentes destacados como Wittgenstein, com sua filosofia analítica da linguagem, e Heidegger, com sua metafísica ontológica, e o fim da ‘pureza da filosofia’. Efetivamente, isso significou que fazer filosofia diz respeito à análise das proposições discursivas sobre o mundo e à releitura sobre o lugar do ser humano no mundo, acrescidos da compreensão de que já não existe mais uma ‘filosofia pura’, que se alimentasse do mito da Grande Mãe dos demais saberes.  

Já no início do século XX havia a crítica da razão. Isto é, a partir da segunda metade do século XX, os pesquisadores, estudiosos e eruditos, aceitaram que a filosofia, enquanto campo de saber, já não prescindia de outros saberes, agrupados ecologicamente. Dito de outra forma, finalmente a arrogância de que a Filosofia se bastava caiu por terra. Mas, outro mito ainda vigorava, a saber: a razão orienta o mundo, o Estado, as mentes e os corações.

Porém, foi a partir dos anos 80, com anúncio nos anos 60, que a razão foi destronada. Com isso, quero dizer que já não se tinha o discurso racionalmente orientado como única característica da filosofia. Além de aceitarem as linhas poéticas, os pensadores passaram a admitir que existem outras formas de fazer filosofia, para além da métrica ocidental. Ainda que não seja ponto pacífico entre todos os estudiosos, a maioria dos pesquisadores já não busca mais por uma filosofia que fale somente sob a orientação metafísico acerca do quê das coisas, ou por uma filosofia que se fosse um apêndice da linguagem, estruturada por conectivos lógicos formais. Já não se faz mais epistemologia sem contar com a neurociência, assim como não se faz filosofia política sem contar com a psicologia.

Com o fim das grandes narrativas, como resultante da tal da pós modernidade, os conhecimentos passaram a se entrelaçar cada vez mais, fazendo com que seja difícil encontrar uma tal “filosofia pura” – seja lá o que isso queira dizer! Hoje, tratamos de uma ecologia de saberes. Estudos na área de Antropologia e Biologia se imiscuíram na Filosofia e vice-versa. Não se trata de estar “junto e misturado”, ou “junto e shallow now”. Antes, diz respeito às adaptações históricas necessários e inescapáveis a qualquer campo de saber, afinal, muitas são as formas de conhecimentos.

A filosofia, por não ser pura, como queria Hiedegger, não passa ao largo da história. Ela é toda histórica. Dessa feita, suas transformações não espantam os irmanados ao pensamento crítico e reflexivo. Talvez em face dessas mudanças histórico-sociais, não só a filosofia, mas também todas as ciências humanas, vêm passando por uma crise terrível, identificada já nos anos 20 do século passado. Se no início do século passado se critica internamente (centros de pesquisas) a produção de saber (científico, filosófico e político-econômico), após os anos 50 as críticas também vêm de faro do âmbito acadêmico. Isto é, aquele respeito e legitimidade adquiridos junto à sociedade chegou ao fim. Os saberes, sobretudo os humanísticos, tornaram-se artigos de luxo, como se fosse um brinquedos-joias que as elites intelectuais e econômicas gostam de ostentar, tanto para seus prazeres, quanto para dar um ar de superioridade diante das massas populares.

A partir dos anos 90 assistimos a uma enxurrada de pesquisas voltadas para outras formas de saberes, a partir de outras geografias. Com as ditas vitórias dos regimes democráticos, vieram também o respeito às outras formas de conhecimentos mundanos, que em nada se parecem com a perspectiva ocidental. Com isso, quero dizer que as filosofias ameríndias, africanas, asiáticas e orientais, como um todo, passaram a ser respeitadas no âmbito acadêmico, ainda que sob protesto de alguns, ainda que sob resistência de seus críticos; uns mais à direita, outros mais à esquerda. Não se deve enganar, a produção de conhecimento está vinculada à política e à economia. Digo mais, além de uma renovada perspectiva jurídica, há uma nova eticidade sobre o olhar para com outros modos de ver e de se viver o mundo.

Os centros de pesquisa (universidade e institutos) perderam suas independências, germinadas já em razão da Segunda Guerra, restando-lhes, por sobrevivência, submeterem-se às ‘benesses’ do Estado. Isso teve um preço: já não se podia mais pensar criticamente. Todo pensamento crítico foi polido de modo a haver uma autocensura dos pensadores: eles só escreviam o que agradava ao Estado, ou escreviam nas entrelinhas. Não obstante os anos 60 sejam emblemáticos em vários sentidos, a rebeldia contra os quadrantes dos costumes e das ideias, não fez com que os centros de saberes ocidentais se rebelassem. Muitas bolsas de pesquisa foram entregues, assim como muita autonomia se perdeu.

O resultado desse quadro geral do século XX foi a herança de uma prática científica do século XXI totalmente diferente da do século passado. Basicamente, os filósofos, mais especificamente, perderam sua autoridade junto à sociedade, como tivera Sartre. Ganharam apoio financeiro para pesquisar, desde que não criticassem abertamente a realidade, assim como outras fontes de saberes passaram a ser respeitadas – os teóricos de Frankfurt são ótimos exemplos a que me refiro: até podiam criticar o Estado democrático, só não podiam ficar falando abertamente sobre Karl Marx, ainda que vivessem, em sua maioria, na dita maior sociedade livre e aberta, a saber, Estados Unidos da América.

Vivemos tempos de perdas e ganhos, e alguns danos, no que diz respeito às ecologias dos saberes ocidentais. Talvez, o maior dano que os saberes humanísticos padece seja sua descaracterização. Enquanto alguns pensavam que respeitar outras formas de saberes como filosofias, seria um problema, uma horda político-econômico se mostrou virulenta contra o conhecimento ilustrado e tradicional – permitam-me usar essa linha diferencial, que nos servirá para o momento. Embalados pelos estudos avançados da crítica da cultura, que destruiu as verdades eternas, alguns passaram a afirmar que tudo era narrativa, de modo que todo tipo de interpretação da realidade era válido, afinal, sustentavam e sustentam eles: cada um tem seu direito a se manifestar sobre o mundo.

Bem, é verdade que todos podem se manifestar sobre o mundo. É um direito importantíssimo. Porém, o que se fez foi uma artimanha engenhosa, e até certo ponto de caráter dubitável, que tenta nos convencer de que a produção de saber é o mesmo que opinião pessoal e, por isso, deve ser respeitada, ouvida e até comungada como boa ciência, como boa filosofia.

O maior problema não é ter esses tipos de pontos de vista, afinal, todos são livres para se expressar. O problema, assim o vejo, está na leniência para com esse tipo de artimanha que adentra o mundo acadêmico como erva daninha. Ora, o que é uma erva danosa, senão aquela que não desejamos e evitamos cultivar!

Sou do entendimento de que não podemos, sob a égide do respeito às liberdades e o exercício democrático, admitir que a produção de conhecimento científico seja corroída por dentro. Isso porque, podemos estar pavimentando nossa própria desgraça. Pois, se por um lado admitimos como legítimos outros pensamentos que não sejam ocidentalizados, por outro, também anuímos posicionamentos deprimentes, mal intencionados e, o que nos interessa, totalmente desprovidos de arcabouço científico. Aqui, não se deve pensar que me oponho ao diferente. Ora, não se tem produção científica sem que haja o confronto de teses; o que não significa, de modo algum, um passe livre para minar o próprio fundamento do saber que se quer erigir.

Sabemos nós que a Filosofia não é uma ciência, assim como sabemos, desde seus tempos áureos e mito-poéticos, que uma boa filosofia se faz com boas opiniões e estas são provenientes de boas pesquisas. Não podemos nos contentar com pífias opiniões, que nos agridem a inteligência e comprometem a seriedade de nossas pesquisas, quando elas, as opiniões, querem se legitimar e travestir de dignas, sob o pretexto de ser mero livre exercício da fala, como forma democrática.

Entretanto, não sugiro a censura, jamais! Sugiro o enfrentamento. Por isso, tenho me posicionado veementemente contra o que creio ser um desserviço epistemológico e uma insalubridade no ambiente acadêmico. Entretanto, não me valho de opiniões proselitistas ou de preciosismos, antes, arraigo-me às pesquisas e leituras segundo as quais elaboro minhas opiniões, quando as pronuncio na abóboda acadêmica, quando tenho intenção de tratar de um tema com sua devida fineza e rigor. Isso não faz de mim alguém especial, talvez me torne alguém que leva, pretensamente, a produção e compartilhamento de saberes a sério. Sigo, a meu modo, a máxima do lógico: daquilo que eu não posso falar, eu me calo! Não confundo alhos com bugalhos, assim como não confundo pós modernidade com pós verdade.

Sabemos, a produção de conhecimento, na sociedade digitalizada, diz respeito a um acordo feito dentro da comunidade científica. A ciência não carece de unanimidade, necessita, isso sim, de consenso, o que nada tem a ver com um pensamento comum, mas sim com corroboração de várias mentes, pesquisas, instrumentos de pesquisa, coleta de dados, anotações e questionamentos sérios. As ciências biológicas e ‘exatas’ diferem das ciências humanas. Enquanto as primeiras categorias se valem de proposição de uma teoria, baseada em várias hipóteses provenientes de resultados adquiridos através de instrumentos científicos, as ciências humanas se valem da análise de documentos, coletas de dados qualitativos e quantitativos, confronto de interpretações, comparações filológicas e hermenêutica de textos.

O que não muda em nenhuma das ciências, é o aspecto rigoroso que elas exigem. Se é biológica, exata ou humanística, toda e qualquer ciência, por princípio, exige de seus participantes a integral seriedade e o completo compromisso com a opinião mais sofisticada possível. Isso significa que nenhum cientista ou mesmo aspirante, teria a ousadia de confundir sua mera compreensão de mundo com uma opinião de quilate científico.

Ainda que a filosofia não seja uma ciência hoje em dia, já que os filósofos do século XIX morreram, o condão do método permanece o mesmo. Aliás, nunca é demais lembrar que Descartes, ainda no século XVI, não busca outra coisa senão um método que seja possível adquirir conhecimento, o qual deve seguir regras rigorosas, que nos afastam de mera opinião e nos eleve às opiniões claras e destintas sobre a realidade, ou a verdade, em seu dizer.

Além dos métodos filológicos, hermenêuticos e estruturais, os filósofos se valem da dialética, da fenomenologia, da analítica, bem como da dialógica, por exemplo. Há muitos tipos de métodos e abordagens, o que não varia, é o compromisso com o rigor, seriedade e respeito sobre o objeto de estudo sobra o qual se debruça. Dito isso, é imperativo assentir que um bom filosofante, sobretudo em âmbito acadêmico, não deve ser indolente em suas pesquisas, nem deve desrespeitar o fazer científico. Vejam, aqui eu não faço uma defesa do academicismo, antes, defendo que se faça filosofia onde quer que seja, todavia, se se quer fazer filosofia nos moldes ocidentais, que se leve em conta o processo de produção de conhecimento ocidental.

Como se diz vulgarmente, quem “desce pro play, deve jogar”, “quem está na chuva, pode se molhar”. Então, que façamos uma boa filosofia acadêmica brasileira, e fujamos das heresias que buscam corroer as bases de uma boa prática filosófica na academia brasileira.