No meio da noite mordi uma sorda preta como se fosse minha derradeira refeição. Lembro-me de que comprei um pacote dessa bolacha a fim de sentir o sabor da memória.
Quando criança, lembro-me do tempero do cravo e do sabor do mel misturados ao trigo cozido. Aquilo realmente me animava o dia. Sorda com café era meu lanche perfeito. Devo ser justo, era meu banquete de luxo.
Quando comi aquela sorda preta no meio da noite, não esperava nada menos que sentir aquele sabor hoje nostálgico. Frustração foi o que recebi. Onde estava o cravo? Onde estava o sabor de mel? O que estava acontecendo? Nada fazia sentido. Certamente, aquela foi uma das minhas maiores decepções. Não, não estou exagerando.
Não deixei de comer a sorda, claro, mas, fiquei pensativo. Perguntei-me sobre a diferença daquela saudosa bolacha para esta frustração. Seria a sua produção industrial em grande escala a responsável pela perda da qualidade? Os ingredientes teriam mudado?
Depois de um tempo pensando sobre as questões que eu mesmo as elenquei, percebi que o problema não era sobre a qualidade, quantidade ou ingredientes relativos à sorda. O que eu buscava não estava mais ali: eu queria o passado. Digo, eu queria reviver aquela sensação gostosa de minha infância. Volta e meia me pego experimentando uma anemoia romanesca do século XVIII – ah, esse mal do século anacrônico!
Mais que a saudade do lanche da tarde, mais do que o sabor e o cheiro da sorda, eu sentia saudade de um tempo que não volta mais.
Às vezes é assim, volta e meia queremos refrescar uma memória gostosa de um passado longínquo. Alguns chamam esse fenômeno de memória afetiva.
Sabe, tenho pra mim que nunca se tratou de uma comida que lembra um bom passado, não se tratava de memória afetiva. Pra mim, se tratava de pura saudade.
Somos o que comemos, disse Feuerbach, e a saudade que sentimos, acrescento eu.