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Não mexa no passado: o Caso Pazuello e a produção do esquecimento

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Diego José Fernandes Freire (Professor de história)

Na semana passada, quando a decisão do Exército de não punir o general da ativa Eduardo Pazuello já começava a esfriar no debate público, um novo elemento veio à cena, conferindo ainda mais relevo ao ocorrido. No último dia 08, saiu na imprensa que o chamado “Caso Pazuello” – de possível infração disciplinar por participar de manifestação política ao lado de Jair Bolsonaro -, ficará sob sigilo de 100 anos, conforme prevê a Lei de Acesso a Informação (LAI).

Muitos analistas apontaram neste fato a vitória pessoal e política de Bolsonaro, na medida em que comprovou seu controle sobre o Exército, instituição da qual obtém enorme fidelidade. Na verdade, é possível ver neste veto militar à memória algo mais do que uma relação incestuosa entre o Exército e o presidente da República. Além de Bolsonaro, um outro personagem também venceu: Lete, a ninfa grega do esquecimento.

Durante uma centena de anos, toda a documentação reunida no processo avaliativo de Pazuello ficará adormecida, em sono profundo, sem jamais vir à luz do dia. Deitada no berço esplêndido do esquecimento, ela ficará distante da história, da pauta diária, do movimento vivo da sociedade. Somente em 2121, quando a maioria das pessoas de hoje não estará mais viva, o processo militar de apuração e julgamento do ex-ministro da saúde poderá ser publicizado para toda a sociedade. Até lá, o caso permanece como segredo de instituição militar, zelosamente protegido do falatório público, do exame questionador de grupos civis, da imprensa incômoda.

Há várias formas de se obter o esquecimento, como por exemplo a destruição de vestígios, a desqualificação de memórias, a manipulação do passado, a anistia de crimes. Segundo Henry Rousso, historiador estudioso da memória, o sigilo faz parte de uma economia do esquecimento. Controlar a memória, regulando o acesso aos seus vestígios, não deixa de ser uma tentativa de organizar o esquecimento.

Ao impor sigilo documental ao caso Pazuello, o Exército acaba por fazer coro ao esquecimento do mesmo. Este acontecimento, vetado pela caserna, fica como que uma memória impedida, abortada bruscamente. Marcado pelo signo da negatividade, o julgamento militar de Pazuello ganha status de evento tabu; logo, indizível, incomunicável, letra morta até que vire página da história. O sigilo é, pois, uma política do esquecimento, especialmente usada em momentos de tensão.

Nesse sentido, não é de hoje que a sociedade brasileira vê o conflito sendo resolvido através do esquecimento abrupto. A Ditadura Militar, caso hostil emblemático de nossa história até os dias de hoje, costuma ser tratado nos termos da ninfa Lete. E aqui a comunidade bolsonarista destaca-se como uma cultura histórica fomentadora do esquecimento. Em várias ocasiões, o bolsonarismo lançou mão do olvidamento como compreensão do que deve ser feito em momentos de enfrentamento.

Em 2019, após ser interpelado pela Organização dos Advogados do Brasil (OAB) sobre declarações feitas a respeito da morte de Fernando Santa Cruz durante a Ditadura Militar, Bolsonaro assim se posicionou: “Eu não pretendo mexer no passado, eu pretendo respeitar a lei da Anistia de 1979”. Ao invés de esclarecer sua fala original, ou de reconhecer o erro e se desculpar, Bolsonaro preferiu encerrar (esquecer?) o assunto.

Para além da Ditadura Militar, a então secretária de cultura Regina Duarte, em entrevista de 07 de maio de 2020, justificou da seguinte forma a posição de Bolsonaro sobre 1964: “Eu não quero ficar olhando para trás, se eu ficar olhando para o retrovisor vou dar uma trombada, posso cair em um precipício ali na frente. Tem que olhar para frente”. Este mesmo posicionamento foi adotado quanto aos mortos por Covid: “Por que olhar para trás? Não vive quem ficar arrastando cordéis de caixões. Acho que tem uma morbidez neste momento. A Covid está trazendo uma morbidez insuportável”.

A máxima “eu não pretendo mexer no passado” parece ser compartilhada não só por Bolsonaro e Regina Duarte, como pelo próprio Exército no caso Pazuello. A pedra do sigilo colocada em cima do processo disciplinar do general traz justamente o princípio da inviolabilidade do passado. No final das contas, é isto que a decisão de 08 de junho impõe a sociedade brasileira: “não mexa no passado”. Para o passado conflituoso, vale o afastamento temporal, o distanciamento como atitude apaziguadora de possíveis tensões. Com isso, assegura-se o esquecimento forçado do ocorrido, censurando e controlando a memória dos fatos.  

Como se chegou a inocentar o general Pazuello? Que argumentação foi usada para tal? Que provas e contraprovas foram usadas? Quem defendeu o quê e como? Tudo isso fica silenciado, estacionado no tempo até 2121, como que inerte, petrificado no passado. Esta é a política do tempo do sigilo: congelar o passado, esfriando-o como algo resolvido, acabado e fechado, por direito e por fato, através daqueles que possuem a legitimidade social e institucional para defini-lo enquanto tal.

A memória pode funcionar como possibilidade de crítica a este uso político do esquecimento. Não a memória enquanto resgate do que houve ou como sinônimo de verdade dos fatos, mas sim como fomentadora do movimento histórico, como força vivificadora, capaz de conceder mobilidade ao passado, abrindo-o ao movimento da história. Rompendo o sigilo do passado, possibilita-se historicizar o vivido, oportunizando outras relações entre passado, presente e futuro, com vistas a criar novos sentidos e orientações na sociedade brasileira. Contra o esquecimento, a memória, a história.  

Fontes:

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/08/exercito-atribui-a-lei-sigilo-de-100-anos-em-processo-sobre-ida-de-pazuello-a-ato-com-bolsonaro.ghtml

https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-07/bolsonaro-pretendo-respeitar-lei-da-anistia