Na Bíblia e no Brasil, não é de bom tom você fazer o bem e alardear. Afinal, diz o Mestre, não se deve acenar com a mão com a qual se pratica caridade. Pois bem, seguindo essa sabedoria de discrição, não narrarei as vezes que fui solidário a alguém. Me limitarei a contar algumas vezes que foram solidários a mim. Aliás, penso que essa é a melhor maneira de tratar a questão.
Por vezes, enxergamos ato de “solidariedade” quando se faz campanha para juntar alimento ou mesmo agasalho, quer seja em razão de catástrofes naturais, quer seja em função da fome generalizada, como tem ocorrido no país de Bolsonaro. Todavia, os atos caridosos estão em toda parte e podem vir de qualquer pessoa. Todavia, aqui defendo, as pessoas mais simples são as maiores emanadoras de solidariedade – em momento oportuno dissertarei como e porquê.
Antes que eu dê exemplos de solidariedade, preciso dizer que muito se confunde uma pessoa simples com uma pessoa humilde. Eu costumo dizer que não é possível ser simples e humilde ao mesmo tempo, apesar de ser totalmente possível ser humilde e simples simultaneamente. Posso provar!
Ser uma pessoa humilde, de acordo com a regra cristã, que é seguida no Ocidente e em países ocidentalizados, é exatamente a prática respeitosa e até servil de quem tem poder para comandar, mas prefere se dispor de seu condão e servir ao próximo. O melhor exemplo, claro, é o de Jesus. Porquanto, de acordo com a tradição, sendo deus, não se furtou em se despir de sua divindade no momento em que resolveu lavar os pés de seus discípulos.
Essa narrativa resguarda um absurdo teológico pouco explorado, a saber: um deus que se prova deus pela simplicidade, não pela força; aqui reside seu poder! A grandeza de uma pessoa está em exatamente não se valer de seu poder para subjugar alguém. Humildade significa sair da posição de poder e de conforto e passar a servir – o que, no final das contas, resulta em mais poder junto às pessoas, ao menos em termos antropológicos.
Porém, estranhamente, ao longo do tempo, se confundiu, de propósito, simplicidade com humildade. Pior, se confundiu pobreza com humildade. Por isso, que não raramente, se vê pessoas dizerem, especialmente em programas de tevê, que fulada é uma pessoa “humildade”, quando, na verdade, se quer dizer que fulana é pobre – agora sem aspas. Como eu disse, para encerrar esse ponto, ser simples nada tem a ver com a humildade. Mas, se é assim, qual a diferença entre ambas? A simplicidade pode ser um adjetivo e/ou um predicado do sujeito, já a humildade é uma virtude. Isso significa que a primeira pode surgir com a pessoa, já a segunda tem de ser praticada, a fim de que seja desenvolvida de forma excelente.
Mas, deixemos de lado essa questão que envolve a humildade e a simplicidade. Eu apenas a apresentei porque, tem de ser dito, é preciso muita simplicidade para se praticar a solidariedade. Raramente, se encontrará um rico que pratique a solidariedade; porque, para tanto, é preciso que, primeiramente, se torne humilde, isto é, passe a servir, isto é, deixe sua posição inicial de poder. Mas, para o rico, o sentido de sua riqueza está na ampliação da possibilidade seu poder.
Lembro-me, com muita clareza, que certo dia fui dar aula no interior da cidade de João Câmara, no Estado do Rio Grande do Norte, no lugar de um amigo, como fazia de costume, aliás. À época eu contava apenas com 18 anos de idade. Ao chegar neste interior, às 6h da manhã, sobreveio uma dor de barriga terrível. No bom e velho português, eu tive uma caganeira de rear. Não me recordo de um dia mais desesperador que aquele.
Olhei para um lado, olhei para outro, não vi saída. A escola ainda estava fechada, eu não conhecia ninguém do lugar. Pensei em mil e uma possibilidades. Eu realmente estava passando mal. Ao mesmo tempo que sentia que as fezes estavam por descer ali mesmo à rua – me perdoem por vos possibilitar essa cena; foi foi minha intenção constrangê-los –, pensava em algum lugar de fuga, um mato qualquer, um prédio, sei lá. Não vi nada que pudesse me servir de esconderijo, ao menos não perto o suficiente para eu poder obrar meu objeto artístico, sem me borrar todo.
Diante da situação, eu tive uma ideia que, com toda certeza, emanou de meu instinto – seja lá o que isso signifique. Resolvi pedir permissão a um senhor para fazer uso de seu banheiro. Acho que foi o dia que fui mais sincero na minha vida. Foi como se uma entidade tivesse se apoderado de mim. Na verdade, foi como se duas entidades estivessem conversando, pois, eu também senti que não falava com o senhor diante de mim. Porém, no fim das contas, eram apenas dois animais conversando com muita seriedade e animalidade.
— Senhor, por favor, eu posso usar seu banheiro. Eu estou me cagando aqui.
— Pode meu fi, eu sei como é. Pode usar à vontade.
— Obri… Deixei para agradecer depois, senão, teria me cagado na sala do senhor.
Aquele gesto de solidariedade jamais será esquecido por mim. Uma pessoa que nunca me viu na vida, permitiu que eu usasse seu banheiro, isto é, adentrasse no seio de sua vida privada.
Para alguns, pode parecer coisa banal, afinal, culturalmente, boa parte dos brasileiros são, estranhamente, muito receptivos aos estranhos. Todavia, não há nada de comum nisso.
O que chama atenção é a simplicidade da pessoa. Uma simplicidade acompanhada de solidariedade – uma simplicidade que fomenta o ato solidário. É isso, o brasileiro, de modo geral, é solidário. Certamente, o senhor viu a sinceridade de meu desespero; possivelmente, passou por um aperreio parecido ou mesmo já viu caso semelhante. Foi a solidariedade do senhor, na sua simplicidade, que fez com que ele me aceitasse em sua casa, sem pestanejar.
Toda solidariedade é um gesto de amor à humanidade, pois, quem sofre e se desespera, tende a enxergar no outro a dor parecida com a que sente; o compadecimento se dá em razão da empatia individual, que se mostra coletiva.
Em uma de minhas aventuras da vida, me deparei junto à estação de trem, um pouco bêbado, só um pouco. Não sei como foi isso, mas, no caminho para passar a catraca que me separava da plataforma, tompei em um batente. Arranquei o chaboque do dedão do pé. Foi algo até desproporcional. Me lembro que fiquei espantado com o dedo escapelado, em fino sangue.
De repente, juro, de repente, apareceu um moço que se dispôs a me ajudar. Certamente, ele fazia (o técnico ou o curso de) enfermagem – talvez eu tenha sido uma cobaia dele, mas, insisto na tese da solidariedade.
Ele começou a limpar meu dedo – acabei de lembrar da cena, ao escrever essas linhas. Fez um curativo ali, na hora. Tinha gaze e esparadrapo. Ou ele vinha de uma aula, ou ele era um rapaz prevenido.
Agradeci-lhe como quem foi contemplado com um milagre, pois, apesar de tudo ter acontecido muito rápido, eu já estava resignado, já aceitava que iria entrar no trem com o dedo estourado, sangue derramando, gente estranhando, mas, de repente, no sábado, surge uma alma caridosa, digo, solidária – maldito vício!
Aquele jovem, em gesto solidário – aqui, eu não levarei em consideração as motivações –, ajudou a outro ser humano em situação de dor. Sua ação foi marcada com a digital da solidariedade.
Nos dois exemplos que usei, a solidariedade foi encontrada na casa de uma pessoa simples, na plataforma do trem, que é usada por pessoas simples.
A solidariedade só pode ser encontrada em pessoas simples. Jesus foi a única exceção, para estruturar a regra.
Para não me alongar mais, mencionarei apenas mais uma recordação. Essa experiência que eu tive foi uma verdadeira contemplação do sublime ético, diria Schopenhauer. Quando adolescente, eu e um amigo fomos de bicicleta até um vilarejo. Ao chegar no local, sentimos necessidade de tomar água. Chegamos na casa de uma senhora. Lhes pedimos água. Ela prontamente nos atendeu e mais, os chamou para entrar em sua casa. Bebemos a água, agradecemos e fomos embora.
Esse fato me ocorreu há mais ou menos 20 anos. Eu nunca esqueço da situação. Aliás, às vezes eu até vejo o rosto da velhinha. Eu nunca vi tanta ingenuidade, fé e simplicidade em uma só pessoa. Ela nos foi solidária. Não nos julgou mal, não ficou desconfiada ou algo do tipo. O que geralmente é dito por certa imprudência, para a estética dela era mais do que normal. Seu gesto solidário ocorreu por simplicidade.
O semblante daquela senhora era pura simplicidade manifesta em solidariedade. Aquela foi minha única experiência estética com o sublime ético. Um sublime que diz respeito à maravilha que é contemplar o ser humano em sua beleza. veja, não me encantei por seu gesto, mas, por sua aura.
Ali estava personificado, e despersonalizado, toda a humanidade. Ali aprendi que há solidariedade, pessoas de bom coração e simplicidade.