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“Ser preto é muito ruim”: é o que querem que pensemos!

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Desde muito jovem via minha avó, cujo apelido era “iaiá” (nome dado às senhoras ou às filhas do fazendo dono legal de pessoas escravizadas), se referir a algumas pessoas pretas de maneira racista. Ela, nascida em 1924, portanto, 36 anos após a abolição da escravatura, ao comentar sobre alguém que era boa pessoa, sempre dizia, se fosse de pele preta, que fulado de tal era “preto, mas, era uma boa pessoa”, que sincrano é era “uma preta boa”.

Aquelas palavras sempre ressoavam como algo muito errado. Apesar de eu não ter nenhuma formação educacional sobre racialização – melhor dizendo, apesar de eu não ter letramento racial algum –, por sentir na pele, eu sempre achei aquilo muito errado. Porém, não quero ignorar o ciclo racismo sobre o qual minha avó foi criada; nem quero, por certo, falar mal dela, pois, eu só não devo minha vida a ela, no mais, eu nem aqui estaria, se ela, mulher branca, não tivesse criado quatro netos frutos de um casamento interracial.

Eu sempre fui uma criança problemática, sempre “dei muito trabalho”, como dizem. Na cercania onde morava, era conhecido pela brabeza e até perversidade, típicas de quem tem ódio do mundo! Alguns amigos diziam que “preto não prestava” e eu era um “exemplo”. À época, até que gostava da menção – não pela menção à cor, claro, mas, da imagem de mau.

Lembro-me de minha primeira experiência tipicamente racista fora de casa e do ciclo de amizade. Um dia vim à cidade do Natal para um show do Sepultura. Emocionado por sair do interior, rapaz de 16 anos, tudo me encantava, inclusive, falar com outras pessoas. Recordo-me de que fui pegar uma informação com um senhor que estava na parada de ônibus, por volta das 18h.

—  Senhor, qual é o ônibus que dá para a… O senhor saiu correndo. Não deu tempo de perguntar sobre qual seria o ônibus que me levaria até Ponta Negra. Aquilo me afetou, mas nem tanto.

 Como diz o trecho da canção, “o tempo passou e eu sofri calado”. Já adulto, por volta de meus 21 anos, no deslumbre da universidade, tive uma ou outra experiência racistas. Uma vez, ao conversar com a namorada de um amigo, ela tocou em meu braço. Ao terminar a conversa, eu saí, mas, pude perceber que ela limpou as mãos, como quem tivesse tocado em algo impuro, sujo – e nem suado eu estava, até cheiroso eu estava.

Outro episódio que ficou na memória foi quando eu e um amigo tentamos pegar um taxi pelo aplicativo. O taxista veio, percebeu quem eram os passageiros – um jovem de cabelo grande e outro de cabelo crespo e barca crescida, eu – e logo tratou de se evadir do local, como quem consegue se livrar de um assalto em potencial.

Uma vez eu estava em frente a uma garagem, esperando um amigo. A moradora, claramente incomodada e receosa, veio me perguntar se eu queria alguma coisa, como se eu tivesse de lhe dar satisfação por que estava ali, em uma rua – só por acaso estava em frente a sua garagem.

Ainda tem outro momento interessante, porém triste. Certo dia, eu estava com um terçol enorme – quase eterno – e com cabelos e barbas crescidos. Uma colega falou comigo e, ao me virar para ela, estendi a mão, cumprimentando-a. Ao me ver, ela tomou um susto enorme, ao ponto de se afastar de mim e não querer tocar em minhas mãos. Bem, aquele foi o episódio mais constrangendo pela qual passei em minha vida. A impressão que tive foi a de que eu era um ser intocável, contraído por uma doença infectocontagiosa. Imagino a estética que ela construiu rapidamente: “cara todo sujo” (leia-se: cabelos e barbas crescidos), “com esse olho horrível… eca!”.

Bem, trouxe esses episódios a lume porque eles servem como exemplos para o que quero falar. Quero falar sobre as mensagens emitidas pelos agentes sociais sobre nossa cor de pele. É como se dissessem, o tempo todo, que ser preto é muito ruim. Desde apelidos clássicos, como “cabelo de Bombril”, até a impressão de sujeito mal-encarado, ruim; a todo tempo estão nos emitindo mensagens que sugerem que neguemos nosso tom de pele. Pois, assim, estaremos senão a salvo, livres de constrangimentos.

Apesar de não ser clichê, não falarei o que o pessoal já vem assentindo, não falarei sobre racismo estrutural, nem sobre racismo frontal. Também não me interessa pontuar acerca da solidão do homem preto.

Limito-me à máxima “ser preto é muito ruim”. Para além de meus exemplos pessoais, mas, sem deixar de os tocar, penso que essa máxima é uma das mais cruéis. Sim, pois, de tanto sofrermos racismos, todo preto, repito, toda preta, em algum momento de sua vida pensou, ainda que inconfessadamente, que “ser preto é muito ruim”. Porém, advirto, não é que achamos, de fato, ruim ser pretos. Não é que odiamos nossa pele – alguns, sim, infelizmente! É que, de tanto racismo que sofremos, chegamos a ficar cansados, ao ponto de pensarmos, às vezes até em alto e bom som: “ser preto é muito ruim”.

A maioria de nós fala ou pensa assim apenas por cansaço, todavia, tristemente, há alguns que, de fato, não gostam da cor de sua pele, pois, lhes disseram: “ela é feia, horrível e suja”.

Hoje, aos 33 anos, sempre tenho de rever cada pensamento que tenho, observando quando recaio em ideias racistas, que me fizeram acreditar. Eu nunca odiei a pele preta, porém, me lembro, nitidamente, que até meus 15 ou 17 anos, olhava para as pessoas de pele preta de outra forma. Para ser mais preciso, eu não apreciava, não achava bonito. De tanto que me disseram que preto é ruim e feio, passei, por um tempo, a acreditar nisso.

Não sei se por apreensão e compreensão de algum tipo de realidade, hoje eu entendo minha negritude e suas implicações. Entendo que sou preto de pele clara – retinto, jamais: nunca fui repintado, retintando! – e que a questão da estética tem mais a ver com política que gostaríamos.

Eu poderia terminar essa crônica solicitando, quiçá imperativamente, que resistamos, que devemos dizer não a toda forma de racismo (estrutural ou frontal), e defender nossa existência com nossa própria vida, se for o caso; porém, termino fazendo um simples apelo: não acredite no que dizem sobre você, tomando por base a cor de sua pele, irmão, irmã.

Esta crônica é, na verdade, uma carta aberta, endereçada aos irmãos de cor e aos irmãos de causa. Ah, e antes que eu me esqueça, por favor, amigos de causa, não me venham com esse papo bizarro de ser um “racista em desconstrução”. Além de agressivo, é fato que todos nós estamos em desconstrução – ou não. A barbárie europeia penetrou nossas medula e DNA, e criou em nós anticorpos referentes aos nossos próprios corpos!

Não esqueça, irmão, sua vida já é resistência, irmã. Todos os dias você tem de lutar contra o racismo incutido em você e nos outros, bem como tem de se manter vivo. Não, não é clichê quando dizem que nossa vida é um ato de resistência; de fato, é!