— … Eu acho que não vou aguentar… Tô mal pa caramba. Tá feio, cara. Tô Mal, cara. A culpa é desse Capitão Bunda Suja, que não providenciou vacina pra nós… Tô mal, cara. Eu acho que eu tô com covid, bicho… Tô mal. Tô mal pa caramba… Eu tô com medo, cara. É como se um filme tivesse passado pela na cabeça. Esse tal de Medeiros aí é responsável por tudo isso que tá acontecendo com o povo brasileiro, cara. Esse maldito. Ele é responsável também. Tô mal pa caramba, bicho. Esse cara vem apoiando esse Governo genocida, esse cara vem sabotando essas vacinas desde o início. Já era pra ter vacina pra nós aí, bicho… para pessoas da minha idade e não tem. E ninguém faz nada, cara, ninguém faz nada nessa desgraça desse país maldito. Um retratado que nem esse Bolsonaro faz o que quer com esse povo, e ninguém faz anda. Parece que tá todo mundo que nem barata tonta. Eu não sei se eu escapo não, bicho… desculpa o desabafo”.
Certamente, essa foi uma das últimas vocalizações de José Roberto Feltrin, ex-assessor do deputado José Medeiros (Podemos-MT). Ele morreu acometido por covid-19 no último dia 18, um pouco depois de gravar esse áudio para um amigo. Transcrevi sua fala quase na íntegra, porque ela é integralmente importante. Desde o início até o fim, nota-se o desespero de Feltrin, atrelado à revolta e indignação, por entre choros, soluços e dificuldade de respirar.
Com toda certeza, o vídeo tem efeitos políticos, inclusive, calculados pela vítima. Porém, eu não quero fazer esse recorte de discussão, não quero nem mesmo falar do Capitão Bunda Suja, vulgo, presidente Bolsonaro. Porquanto, foi outra coisa que chamou atenção nesse áudio: ouço um animal desesperado diante de sua morte iminente; um animal que, como é comum, reclama de sua dor e não aceita seu fim, especialmente por ter sido responsabilidade – ou a falta dela, para ser mais preciso – de terceiros a gravidade de seu estado de saúde, haja vista a total negligência do Governo em relação à saúde pública.
João Cabral de Melo Neto, no poema Os Três Mal-Amados, fala sobre quão faminto é o amor, ou, mais precisamente, quão corrosiva pode ser a paixão. Porém, para não estragar o poema, fiquemos com a ideia de que o amor a tudo e a todos devora – se não todos, pelo menos a Joaquim. Quando ouvi o áudio de Feltrin me lembrei desse poema. Lembrei que em suas últimas linhas, Cabral diz, através de Joaquim, que “o amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”. O trecho “medo da morte” martelou em minha cabeça.
Um animal que perde o medo da morte, perde sua animalidade. Entendo que ou Cabral tem uma visão deturbada acerca do amor, já que ele descreve a paixão no poema, ou ele está nos dizendo que um tipo de sentimento desse não vale apena, haja vista tirar o que tem de mais animalesco, portanto, o mais sagrado, no ser humano: o medo da morte, que é o mesmo que dizer “amor à vida”. Digo, Joaquim, no caso, não seria um mal-amado, mas, um mal amante!
Porém, parece ser um fato que alguns seres humanos perderam o medo de morrer. Perderam o amor por si, assim como perderam sua animalidade. Somente um tolo pensa que se lançar em uma guerra perdida é um ato heroico. Somente um tolo comete suicídio altruísta – veja, aqui não me refiro ao suicídio por causa pessoal e individual, que também tem fundamento coletivo, como nos diria Durkheim; refiro-me ao suicídio praticado por membros de seitas e facções religiosas como os cristãos evangelistas, os adeptos do jihadismo e os suicidas de Jonestown.
Todavia, de maneira muito triste, estamos assistindo, no Brasil, um espetáculo de tolices a céu aberta e com plateia lotada. Muitos de nós perderam a animalidade, digo, o medo da morte. A começar pelo próprio presidente, o líder-mor dessa seita semi-messiânica, que se apresenta com vieses políticos. Às vezes eu penso que até o próprio Bolsonaro, por ter Messias no nome, pensa que se morrer ressuscitará ao terceiro dia. Pois, não faz o menor sentido sua campanha de exposição à covid, praticada exemplarmente por ele – ou faz sentido, para ele, desde que ele já tenha se vacinado., o que, de acordo com a ciência médica, não impede-o de contrair o vírus.
A impressão que ele passa de não ter medo de morrer, faz com que seus seguidores mais fieis de fato percam o medo da morte e, o pior, pensem que todos devem fazer o mesmo. Ao fazer-se uma comparação metafórica acerca da profundidade de nossa realidade caótica, pode-se dizer que chegamos ao manto da Terra. Ainda faltam os núcleos externo e interno, mas, chegaremos lá, pois, como está escrito na terceira lei de Murphy: “nada é tão ruim que não possa piorar (tudo que começa bem, termina mal e tudo que começa mal, termina pior)”. É claro que o Governo Bolsonaro é um mau começo!
Como disse, perder o medo da morte é perder a animalidade, que é o mesmo que dizer que se perdeu a capacidade de amar a si mesmo. O choro de Feltrin se deu porque ele não perdeu sua animalidade. Sentiu medo de morrer – mais do que sentiu que ia morrer. Sua indignação é a de quem está vivo e ama viver e, por seu turno, é praticamente o único animal que sabe que um dia morrerá. É uma revolta típica de alguém que conserva o instinto pulsante de viver .
Talvez alguns possam pensar, filosoficamente, que ele demonstrou racionalidade e civilidade. Pelo contrário, o desespero de Feltrin é o mesmo de qualquer animal que se vê em perigo real. É o puro e simples medo de morrer. Medo esse, repito, que muitos dos seguidores de Bolsonaro perderam. Aparentemente, os bolsonaristas perderam o medo da morte, porque não amam a vida. Como diz Schopenhauer, em algum lugar: “a morte faz parte da vida”.
Todavia, há outro aspecto expresso por Feltrin que me chama atenção: ele comenta que “Bolsonaro faz o que quer com o povo, e ninguém faz nada”, como se todos estivéssemos como baratas tontas. É isso, boa parte da população está atordoada. Contudo, olhando de perto, podemos desvendar essa inércia.
Vamos lá.
Uma parcela da população é de crianças e idosos, outra parcela é de adultos ocupados e que entre ela há os que são mais ou menos esclarecidos politicamente – afora as crianças, ninguém pode ser considerado analfabeto político! Além desses, há as camadas política e econômica. A primeira é composta por políticos profissionais que se proliferam em dinastia. A segunda é composta por empresários que não vivem no Brasil e se pisam nessa terra, é só a passeio.
A inércia da qual Feltrin reclama, foi muito bem estruturada pelas elites econômica e política, que contam com seu braço armado, que são as forças policiais, cuja manutenção é paga pelo mesmo povo que elas contêm – para alguns ironia, para mim, perversidade e escárnio.
Ainda que Feltrin atribua inércia ao povo, na verdade, o que existe é um êxito de projeto. Os congressistas, juntamente com os ministros do Judiciário – que simplesmente representam orgânica e fisicamente o Estado brasileiro –, não tomam nenhuma ação efetiva para conter esse vírus (eu sei que você entendeu a que vírus eu me refiro), porque, pasmem, ele é só um “contratempo” que apareceu no caminho do golpe.
Não obstante contasse com apoio de parcela da população, da maioria esmagadora da impressa, dos militares (Marinha, Aeronáutica e Exército) – pensou que eu ia esquecê-lo, né? –, de boa parte dos políticos, do STF e de boa parte dos empresários, esse golpe que a Dilma sofreu, em razão dos novos poços do ouro negro, só se consolidaria se tivesse uma política ultraliberal em curso, e que fosse mantida pelos poderes da República.
Bem, é exatamente isso que está acontecendo, doa em quem doer. Em resumo, retirar Bolsonaro do poder, o que seria o humanamente mais acertado, significa dizer que todo o projeto liberal – leia-se: golpe! – deu foi por água abaixo, especialmente porque Lula está livre , pois, na prática, outro projeto político pode voltar à cena.
Veja a dimensão do comboio de corda. O STF, que é o Estado e faz parte do golpe, deu um passo atrás, ao soltar Lula, porque se tornou insustentável sua prisão, sob perigo de o Estado se desmantelar, em termos de funcionamento e operação política, se sua prisão continuasse. Isso porque, se eles continuassem com esse teatro amador, o próprio Supremo perderia sentido, digo, perderia ainda mais legitimação no seio da sociedade – legitimidade essa já abalada pela ala bolsonarista.
Quando se diz que o “povo não faz nada”, se põe muita gente nesse balaio. Isso porque, como eu tinha dito, o povo foi atado política, policial, econômica, mídia e juridicamente. O povo não pode fazer quase nada! Já os políticos e empresários estão, em sua maioria absoluta, executando os planos para o assentamento do golpe – engendrado lá… onde? Onde? Isso mesmo, nos EUA. Quer dizer, a maioria dos políticos e dos ministros do Judiciário são tão culpados quanto Bolsonaro no que diz respeito ao genocídio obscenamente impetrado no país.
Os seres desalmados não sentem medo da morte. É o que ocorre com as plantas e com as pedras. Eles simplesmente não percebem, nem sentem o mundo como nós, que somos animais animados.
Entretanto, muitos de nós ainda têm alma. A maioria de nós ama a vida e teme a morte, como é comum a todos os animais. O maior gesto de civilização que podemos mostrar hoje é recuperar nossa animalidade e lutar pela vida.
Temos de reagir, simplesmente reagir. Apesar de estarmos atados pelas cordas nada invisíveis da impressa, da política, da polícia e do direito, temos algo maior, tão importante quanto a vida: não temos nada. Isso mesmo, não temos nada a perder. Temos de reagir. Nossa gente está morrendo. É um dever socialmente civilizatório (aqui faço um apelo através da lógica iluminista) e animalesco reagirmos, senão, a nação brasileira chegará ao seu fim. Pois, já não faz mais sentido viver nessa conjuntura geopolítica. Aliás, nunca fez sentido algum, hoje faz ainda menos.
Independentemente de ser por questão geopolítica, temos de reagir em nome de nossas vidas. Defender a vida com a própria morte é um ato de amor à vida. Que vivamos, que morramos, lutemos, senão, seremos sempre essa barata tonta que é esmagada por um ser humano perverso. E, para tanto, usemos todas as armas disponíveis.
Entretanto, mantemos nossa consciência límpida, sabemos que tirar Bolsonaro é necessário para conter o genocídio da nação, o que não significa dizer que será suficiente para conter os estragos do golpe.
Jamais esqueçamos deste princípio: somente o povo pode salvar o povo!