Diego José Fernandes Freire (Professor de história)
Na manhã do dia 04 de maio de 2021, o Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Norte (RN) estampou a oficialização da lei 10.887, então sancionada pela governadora Fátima Bezerra. A boa-nova instituiu, “no calendário Oficial de Eventos do Estado”, o “Dia Estadual em Memória às vítimas que faleceram em decorrência do COVID-19” (http://diariooficial.rn.gov.br/dei/dorn3/docview.aspx?id_jor=00000001&data=20210505&id_doc=722199). De agora em diante, todo 28 de março recordará os indivíduos que sucumbiram perante o vírus atualmente em voga. A escolha por tal dia indica o momento em que houve o primeiro registro de óbito por Covid-19 no estado. Nesse sentido, a lei realiza uma importante homenagem a Luiz Di Souza, professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, cujo falecimento ocorreu no dia 28 de março de 2020, quando tinha apenas 61 anos de idade.
A origem da lei 10.887 surgiu a partir da iniciativa do deputado Ubaldo Fernandes (Partido Liberal), que protocolou na Assembleia Legislativa um Projeto de Lei (PL) para homenagear os potiguares que faleceram em razão da pandemia do coronavírus. O objetivo, segundo o político, era conseguir a aprovação do PL até o mês de março, quando o momento pandêmico completaria um ano. Porém, somente nos últimos dias o PL foi transformado em lei, com a sanção plena do executivo estadual. Antes tarde do que nunca, certamente.
Iniciativas como a do RN estão ocorrendo em diversos lugares. Estados como Pernambuco, Ceará, Paraíba, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, entre outros, instituíram ou estão instituindo um dia específico e oficial para render graças às vítimas fatais da Covid-19. Há até um PL tramitando na câmara dos deputados, da autoria de André Ferreira (PSC), a fim de estabelecer a data de 17 de março como “o Dia Nacional em Memória das vítimas da Covid-19 e de homenagem aos profissionais da Saúde” (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2253432.
A lei 10. 887, assim como tantas outras que se espalham pelo país, coloca pertinentes questões para o debate público: como se lida social e politicamente com o presente traumático? O que o Estado pode fazer em relação ao passado coletivo, no sentido de compor e recompor a memória social? Que tipo de responsabilidade moral e política os cidadãos têm com o passado público e com as práticas e discursos que lhe deram forma e validade institucional? O que do passado comunitário ainda atravessa o tempo e pesa sobre os indivíduos?
As ações memoriais supracitadas parecem responder diretamente às demandas do presente crítico em que se vive já há mais de um ano. O crescimento diário de infectados pelo vírus, a alta do número de mortos (mais de 400 mil no total!), bem como o colapso da rede nacional de saúde, tem gerado uma demanda social que contradiz o propalado discurso segundo o qual o Brasil é um país desmemorizado, sem memória. Algumas autoridades públicas e a própria sociedade civil têm se engajado em um visível dever de memória.
O cenário mortífero atua como se fosse um ferimento no corpo nacional, constantemente a sangrar, com pouca previsão de estancamento, todavia. Nenhuma nação se aproxima de meio milhão de mortos de maneira ilesa. Nenhum brasileiro ou brasileira pode dizer que está passando pela pandemia de forma indolor, indiferente ao cenário de morticínio, alheio a tudo e a todos. A morte, à espreita, virou como nunca um temor geral, uma ameaça iminente, mesmo entre aqueles e aquelas que, ignorando as medidas de biossegurança, aglomeram-se, como se restasse apenas poucas horas de prazer para se desfrutar.
O momento é, pois, de trauma coletivo, de nebuloso sentimento soturno, de ferimento no tecido social. Nesta conjuntura trágica, as artes da memória aparecem como possibilidade de aliviar a dor social, de amenizar o drama vivido por tantos indivíduos que tiveram de lidar com a perda súbita de um ente familiar querido. O trabalho da memória, não de hoje, já se sabe, é terapêutico. Ele oportuniza um gerenciamento da ausência, dando a esta, inclusive, um lugar de honra na ordem do tempo. Gestão do passado, individual ou coletivo, a memória tem o poder de organizar vidas passadas, e assim amenizar a sensação de desordem, de caos, de “perda do chão” que muitas vezes irrompe no momento trágico da morte, ainda mais em proporções elevadas como as de hoje.
Com a lembrança coletiva da dor, conforme sugere a lei 10.887, o fardo de cada um oriundo da morte pode ser dividido com terceiros, em um ritual público de compartilhamento do sofrimento. Lembrar os mortos, quanto menos individualizado for, tanto mais permite a expiação coletiva do sofrimento. Aqui, segundo as Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise de Freud – texto de 1912 -, o trabalho de cura começa a se dar em uma dimensão capaz de regenerar os indivíduos. Enquanto estes permanecem consternados sozinhos, guardando individualmente para si o sofrimento, o tempo do trauma se prolonga, impedindo, portanto, o luto. Uma dor traumática possui uma resistente – e estranha – capacidade de se enterrar nos corpos, sobretudo quando experimentada na solidão de cada mente e de cada coração.
A recém assinada lei ganha ainda mais relevância em um momento no qual o chefe maior da nação, aquele que mais deve personalizar o país, se nega a reconhecer o sofrimento individual e coletivo de seu povo. O presidente Jair Bolsonaro, com sua atuação negacionista, impede o luto social, prolongando o trauma histórico, eternizando o sangramento da ferida nacional. Talvez este seja um dos efeitos mais perverso do negacionismo: o não reconhecimento da dor coletiva. No limite, tal situação só faz prolongar e intensificar a crise pandêmica, que não deixe de ser também uma crise civilizatória, de valores, de comportamentos.
Não ver a dor do outro, ou não falar sobre, equivale a negá-la, em uma atitude de não solidariedade, de não empatia para com os membros de uma sociedade, o que em nada contribui para a reconstrução social. Antes, só aumenta a sensação de desamparo, de aflição, de crise existencial. O negacionismo, assim, afronta o próprio direito à memória, travando um processo social de reelaboração do passado vital em momentos de trauma.
Se, como lembra o antropólogo Pierre Clastres, o corpo da comunidade é uma superfície de inscrição da memória, é preciso inscrever no corpo da nação uma contramemória da dor, do sofrimento, da injustiça proporcionada pela morte em uma situação social de descaso pela vida, conforme ocorre hoje no Brasil. Se o trauma é sempre algo que vem de fora, externamente, para invadir e dominar o corpo alheio, a lembrança, nascendo da alma, da consciência individual ou social, por sua vez, emerge como o antídoto, como a cura, como o dispositivo capaz de liberar a dor, cicatrizando-a, fazendo-a ser apenas forma, marca, cicatriz.
Este parece ser o sentido maior das ações memoriais que se multiplicam nos espaços formais da política brasileira. Afinal, como apontou um importante historiador que se debruçou sobre a memória da ditadura militar, recordar é vencer: vencer o silêncio da morte que emudece as palavras, vencer o vazio deixado pela vida que se foi bruscamente, vencer a dor paralisante. Não à toa, leis como a sancionada por Fátima Bezerra provocam movimentos na sociedade, colocam em circulação palavras, pessoas, valores e ideias.
O tempo se rompe, no mesmo golpe que o imobilismo da sociedade, como se mostrasse o próprio refazer da vida, que agora segue seu curso. Não há aqui a própria tríade freudiana do luto – Recordar, repetir e elaborar? Luto que se converte em luta, em afirmação da vida e do viver. Margareth Freire, primeira mulher a enviuvar em razão do coroanavírus no RN, materializou a ação criativa da memória com os versos a seguir, ofertados ao seu esposo, Luiz Di Souza:
E de repente
Sem nem perceber
Me fiz você
Apesar da dor
Preciso seguir
Lembrando
Sofrendo
Chorando
Sorrindo
Pouco a pouco
Vou seguindo
O caminho que me resta
Ser você é a porta aberta
Para ver a vida
Com um novo olhar
(https://www.saibamais.jor.br/dia-estadual-em-memoria-as-vitimas-da-covid-19-recorda-primeira-morte-no-rn-o-professor-luiz-di-souza/)
Do passado para o presente, a memória encontra sua razão de ser no próprio tempo que se vive, na temporalidade do vivido, aberta ao futuro. Sua relevância, assim, se mostra para todos aqueles e aquelas que se valem dela. Fincada no presente, ela funda um posicionamento ético-político capaz de orientar a vida das pessoas. O que lembrar e o que esquecer assegura determinados passados no presente de uma sociedade. Daí se falar em uma política da memória, a qual atua não só administrando as lembranças coletivas como também fornecendo sentidos de futuro. É o próprio caminhar da vida que está em jogo. Carregando ainda o fardo da dor, o peso traumático do passado que não passa, como se pode seguir em frente?
Dessa forma, o ato legal sancionado por Fátima Bezerra faz da memória um recurso regenerativo do corpo social, que reconhece as vítimas fatais e o próprio trauma histórico daí decorrente. Contra a imobilização social, contra a eternização do presente trágico, irrompe a memória, convocando um passado ressignificado, capaz de abrir o tempo não só para o que foi, como também para o que será. A própria capacidade de imaginação social, seja para o passado, seja para o futuro, comparece, restaurando os laços sociais, os sentimentos coletivos de identidade e de pertencimento.
Logo, trata-se de uma importante medida para a reconstrução social, para o viver melhor das pessoas em um contexto já de enormes dificuldades materiais. A política de memória trazida com a lei 10.887 não diz respeito somente ao passado; ela oferta à sociedade inúmeros ganhos para o presente e para o futuro. Os vivos, tanto quantos os mortos, são por ela impactados, no sentido de um viver mais humano e fraterno, sem grandes traumatismos sociais. O combate contra o vírus é, também, um combate pela memória.
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*Como este texto trata de dor, memória e reconhecimento, dedico-o In Memoriam de Eliane Fernandes Freire (1954-2020).
Foto: Sergio Lima